Futebol e consciência

por FLAVIA CIRINO

Quando pensamos num jogador de futebol, preto, a imagem de uma mulher branca ao seu lado logo vem à cabeça. Mesmo que “sem querer”. Culpa da colonização? É cultural? O que acontece? Seja como for, entre os jogadores de destaque, atualmente, no Brasil, somente dois são casados com mulher preta. Um deles, João Alves de Assis Silva. O atacante de 33 anos está de volta ao Brasil para jogar no Corinthians, time do qual fez parte do elenco em outras duas temporadas. Na contramão da esmagadora maioria, Jô formou uma família preta, e costuma receber elogios pelo fato de não “ter fisgado uma loura”, destacando a mítica do jogador de futebol preto que opta pela relação inter-racial.

Casado há 13 anos com a carioca Claudia Silva, 36, mãe de seus dois filhos, Pedro e Miguel, Jô contou detalhes de sua trajetória, e comemora a volta ao Timão após uma difícil adaptação no Japão. Ele destaca ainda como a fé reestruturou sua vida, sem esconder turbulências que envolveram relações extraconjugais, separação e até um divórcio com Claudia. Superadas as dificuldades, ele relembra o forte preconceito racial sofrido na Rússia e se afirma estar focado na família e nas quatro linhas de Itaquera. Bola em jogo!

“Desde que me conheço por gente, meus pais colocaram na minha cabeça que a gente não pode ter diferença em nada.”

Foi assim que João Alves de Assis Silva, o Jô, iniciou um amistoso bate-papo com a reportagem da RAÇA, em sua casa, no Rio de Janeiro, às vésperas da mudança para São Paulo, onde se reintegrou ao Corinthians, clube no qual começou sua trajetória. Após morar em seis países, Jô se consolida como um homem realizado pessoal e profissionalmente, e atribui à família o seu êxito. Em especial, à mulher, Claudia Silva.

“Sou um dos poucos jogadores de futebol a formar uma família preta. E isso é algo que sempre é citado por meus fãs e seguidores nas redes sociais. Que eu conheça, aqui no Brasil, somente eu e o Cortez, do Grêmio, somos casados com uma preta. Tinha o Ramirez, do Palmeiras, mas se separou.” Jô enfatiza que, em sua casa, a questão racial sempre foi muito debatida.

“Na minha criação, aprendi que não temos que ter preconceito de nada, tanto sexual, quanto racial, classe social, nada! Minha família é de origem pobre e isso sempre foi conversado em casa, não foi depois que virei jogador. Eu não coloquei isso na cabeça de repente. E sempre vi minha família indo por esse lado, de se juntar à pele negra.

O casal se conheceu quando Jô pertencia à equipe do CSKA, da Rússia. Claudia, à época passista da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, cuja comunidade ela nasceu e foi criada, viajara com o grupo-show para uma temporada em Moscou. Foi uma fase difícil, em que Jô sentia na pele o preconceito por jogadores de futebol, no país. Claudia foi um grande alicerce para superar os ataques racistas.

Preconceito

“Na Rússia tem muito preconceito racial. Eu joguei contra um time que até hoje não tem aceitação, negro não é bem visto no time. Agora tem o Malcom, que foi muito rejeitado pela torcida. O treinador e o presidente intercederam, a cidade inteira reclamou, mas ele começou a jogar bem e as coisas melhoraram. Eu e Vagner Love éramos do mesmo time (CSKA) e quando a gente entrava para aquecer, jogavam casca de banana. Outro jogador, Welington, de outro time, nunca foi aceito. No último ano dele, a torcida colocou uma faixa no estádio, escrita “vai embora, seu macaco, seu lugar não é aqui”. Ele jogou quatro anos no mesmo time. Eu fiquei três anos. Quando a gente chega lá, já sabemos dessas histórias, mas constatar é bem pesado. Ficava pensando: pra que aquilo? A gente relevava, mas é triste!”, lembra.

Persistir foi algo que ele aprendeu cedo. Na casa de Jô, o sonho de ser jogador era de seu irmão, que morreu antes de concretizá-lo. Os pais, então, incentivaram-no a trilhar o caminho, sempre o preparando para os eventuais contratempos por conta da cor da pele. E fizeram de tudo para que ele tivesse a autoestima elevada, com segurança e orgulho de sua origem.

“Comecei a jogar cedo no Corinthians e tinha que conviver com pessoas de condições melhores que a gente; eles sempre me prepararam pra eu não me deslumbrar, nunca almejar o que não é meu, não invejar. Diziam ainda que, se eu fosse ofendido, deveria entender que existem pessoas más.”

Por conta do clube Jô estudou numa escola particular, Alvorada, na Vila Formosa, onde só havia ele e outro aluno negro.

“Eu jogava, essa escola tinha uma equipe de futsal, eles formavam equipe com jogadores de cada clube e davam bolsa de estudos pra gente formar um time e competir com as outras escolas. Eu lembro que era eu e mais um, na escola toda. E ali, na minha cabeça e na cabeça dos meus pais, eu ia sofrer muito. Mas fui muito acolhido. Lembro até hoje que a diretora e os professores, com medo de eu me acanhar, de me sentir diminuído, eles sempre me deram força.” 

Com seus dois filhos, Pedro e Miguel, de cinco e dois anos, respectivamente, o jogador faz de tudo para repetir os ensinamentos dos pais. E Claudia mantém com as crianças uma relação de intensa troca, colocando limites e enfatizando a importância do diálogo e do afeto.

Temos muito diálogo em casa

Eu e a Claudia conversamos muito com os meninos, sempre. Outro dia o Pedro perguntou se ele era marrom. ‘Expliquei que a cor é linda, que ele tem que ter orgulho, que pode ser que alguém não admire, mas ele é lindo marrom. Sempre vou encaixando maneiras dele se defender. O que a criança vê e pergunta, os pais têm que ter a sabedoria de saber ensinar. Hoje é tudo muito exposto. Em casa, temos uma conta nas redes sociais, pra todo mundo e coloco notificações. Tudo o que eles veem, chega pra mim. O acesso à tecnologia, hoje, tem uma dualidade grande”, enfatiza.

Jô ressalta que não mais se deslumbra com a ascensão financeira em sua vida, que no passado causou “muito estrago”. E lembra que, nos tempos de escola, seus principais dribles eram justamente para fazer a grana render. “Com o dinheiro que meu pai me dava, eu tinha que pegar a condução, comer, ir pro treino no Corinthians e voltar pra casa. Às vezes eu não tinha para a merenda na escola e não queria me sentir inferior. Um dia eu comia, no outro eu passava por baixo na condução. Se eu desse uma de coitadinho, ficasse pelos cantos, não ia ser legal. E assim eu comecei a ganhar respeito, os meus amigos me ofereceram lanche, queriam pagar, eu aceitava. Quando fui pra outra escola, Carlos Drumond de Andrade, no Tatuapé, tinha outros negros.”

VOLTA AO BRASIL

Após 18 meses no Japão, Jô se desvinculou do Nagoya Grampus pouco antes da pandemia e foi para o Rio de Janeiro com a mulher e os dois filhos do casal. De lá, o centroavante acertou seu retorno – pela terceira vez – ao Corinthians. Até voltar oficialmente ao CT, treinou em casa, sob orientação do departamento físico do Corinthians, com quem fez contato quase que diariamente.

Com o novo contrato firmado até 2023, o novo camisa 7 do Timão não entra em campo desde dezembro de 2019, ano em que marcou apenas oito gols em 37 partidas. Com o mesmo número de atuações, em 2018, foram 24 gols, no Japão. O retorno ao Brasil era algo que Jô planejava há tempos. Ele contou que a experiência mais recente, no Japão, foi a que mais demorou a se adaptar.

“Morei em 5 países antes do Japão e achei que era só mais um, que tiraria de letra, mas não foi… uma cultura oposta à nossa, foi muito difícil entender como viver num país onde as pessoas são muito frias e fechadas pelo fato deles serem oprimidos por perder a guerra para os Estados Unidos, eles não têm o entusiasmo e a alegria que o nosso povo tem.

Você chega num lugar e eles estão sempre desconfiados.

Acostumamos, passamos dificuldades no idioma, ninguém falava inglês, pensei que seria mais fácil. Demoramos quase um ano para nos adaptarmos. O lado bom: segurança impecável, higienização fora do normal, organização, muita coisa diferente do Brasil.” Quando estava se habituando, foi a hora de voltar.

“A gente acostuma com as coisas de lá, e após dois anos e meio, voltei pra cá e tive que cortar alguns costumes. Horário, por exemplo, já sou chato com horário, fiquei mais chato ainda porque lá é tudo certinho. Com a pandemia, as pessoas aqui, agora, deixam o sapato do lado de fora, o que já fazia lá. Japão é o oposto do que a gente vive aqui. Lá não tem classe baixa, é da média pra alta, porque o salário mínimo é muito alto, equivale a R$ 6 mil, todos têm uma vida boa. Mas há lugares e lugares. Temos que virar essa chave, sabemos como é difícil aqui.”

APAIXONADO

Falar em Claudia, a esposa, é algo que deixa Jô com os olhos lacrimejados, num misto de amor, respeito e, acima de tudo, gratidão. Com ela, o atleta viveu diversas fases. Algumas, quer esquecer. Prefere a plenitude que veio com a chegada dos filhos. É à esposa a quem Jô atribui sua recuperação nas quatro linhas. Segura de si, Claudia conta que não foi fácil.

“Quando nos conhecemos, na Rússia, em 2006, Jô tinha 18 anos e eu, 22. O samba era tudo pra mim, eu estava numa turnê com o grupo Explode Brasil. Ele foi assistir ao show com os amigos e nos apaixonamos. A turnê durou seis meses. Voltei para o Brasil, fiquei um mês e quando retornei à Rússia para outra temporada de seis meses, ele me pediu em noivado. Éramos jovens e nossas atitudes contrastavam muito. Eu não ouvia, ele também não. Com o passar dos anos, uma tia me disse que só pela fé eu teria como salvar a nossa relação”, conta.

“Ela tem uma personalidade muito forte e era esse o motivo de nossos atritos, embora hoje eu veja como grande qualidade. Ela era muito radical, queria me moldar ao jeito dela. Mas foi uma mulher guerreira, que suportou uma série de coisas, bombardeios, problemas meus extraconjugais, que se fosse o contrário eu não sei se enfrentaria. Ela foi fantástica, melhorou ainda mais com a chegada do nosso primeiro filho. Ela sempre me ajudou muito. Eu chegava do treino, com dores e queria esconder, mas ela já sabia o que eu estava sentindo, só em me olhar. Se eu estava chateado, ela sabia. É uma mulher que conhece o homem que tem. É virtuosa, entrega-se de verdade. Não só como mulher, é assim com os amigos, com a família, ela toma as dores, ela chora, quer abraçar o mundo”, diz, orgulhoso.

O casal, convertido à religião evangélica, atribui à fé a harmonia que existe entre eles. Foi desta maneira que Jô superou a má fase profissional.

“Claudia coloca Deus em primeiro lugar, cuida da família como ninguém. Ela sofreu muito, calada. Dificilmente ela divide as angústias, mas aprendeu muito. E eu aprendi muito com ela, principalmente a não desistir. Muitas vezes eu desistia, falava que não queria mais, que ia viver minha vida. E ela, pelo orgulho dela e a personalidade forte, dizia, ok, então cada um vai pro seu lado. Mas não era o que ela queria. Eu sempre fui o cabeça dura, o cabeça ruim. O que ela já passou comigo, no nosso casamento, acredito que nenhuma outra mulher passaria, conseguiria superar. Ela superou e com classe. Tenho muito orgulho dela, da família que ela formou comigo e dar esse testemunho dela é muito interessante, orgulho-me de como ela ficou forte. Lutou e hoje tem a família. Acho fantástico como ela se encorajou.

Quando ela se batizou, eu falava que ela estava chata e nisso crescia espiritualmente”. Apesar de ter alcançado um grande feito em 2013, sendo artilheiro da Libertadores e entrando para a Copa do Mundo em 2014, a vida do atacante não ia bem. Além das brigas em casa, ele ficou um ano sem fazer gol.

“A gente se separou pela última vez (foram duas separações). Quando a gente voltou no final de 2014, eu achei que estava na hora, tanto profissional quanto pessoalmente, o melhor caminho seria seguir a fé, seguir a Deus, o que fortaleceu ainda mais nosso casamento, nossa família.”

A VERDADEIRA CRAQUE

Todos os que conhecem Claudia Silva são unânimes: ela tem a personalidade forte, mas desarma qualquer um com seu sorriso. Aos 36 anos, a carioca nascida e criada no Morro do Salgueiro, na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, driblou com sabedoria a fase mais difícil ao lado do marido, época em que ele perdia noites entre bebedeiras e mulheres, o que o levou a ficar um ano sem fazer gols. A separação foi inevitável e eles acabaram casando duas vezes.

“Nos separamos a primeira vez, voltamos e na segunda separação eu pedi o divórcio. Reatamos e casamos novamente, no papel. Temos duas certidões”, conta com sua gargalhada inebriante.

“Quando coloquei Deus no topo, tudo mudou. Percebi que precisávamos caminhar sempre juntos, olhando para mesma direção. É importante amadurecer e entender que é preciso respeito mútuo. Deixei de dar ouvidos ao que não existe e hoje seguimos nossa vida com amor, respeitando o espaço de cada um e enchendo nossos filhos de amor”.

A expectativa é que, agora, feliz na vida pessoal e na profissional, Jô repita o êxito de suas temporadas anteriores no Timão e esteja ainda melhor. 

“Voltar para a minha casa, junto desse bando de loucos, é uma grande presente”, afirma.

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