Glória Maria – “Nada de novo no front”
Que me desculpem os militantes aguerridos da luta antirracista, mas para mim, que acompanho a trajetória profissional da apresentadora Glória Maria há muitos anos na televisão brasileira, não há nada de surpreendente em sua declaração de que – ‘Hoje tudo é racismo, tudo é preconceito. Um saco’.
Em verdade, ela faz parte de um arquétipo emoldurado para negros e negras, no pós-abolição brasileiro, que continua vivo até os dias de hoje, em que pese a nossa luta cotidiana para denunciar os dramas e tragédias de uma sociedade racista.
É o arquétipo que coloca a responsabilidade pela superação dos quase quatrocentos anos de escravidão exclusivamente na conta dos negros/as e que para esconder esse crime de lesa humanidade, promoveu o maior apagamento histórico da humanidade. Para não serem incomodados, cobrados ou lembrados de que a situação de penúria, exclusão e discriminação que vive a maioria da população negra é fruto dessa escravidão, introduziu e difundiu o discurso de que tratar desse assunto é coisa de negro ressentido, mal-agradecido e que não enxerga a generosidade da elite brasileira que até permite que alguns negros/as se destaquem.
Por mais que contestemos, essa é a narrativa, que lamentavelmente ainda se faz presente na cabeça de boa parte da sociedade brasileira e, diga-se de passagem, também de negros e negras. É duro, nos deixa indignados, mas é o resultado do que chamamos, eufemisticamente, de racismo estrutural. .
Não a condeno por pensar e agir assim. Afinal, ela foi programada e adestrada para isso. Numa época, em que vigia no país, a aclamação da chamada “Democracia Racial”. Não a condeno, mas também não a absolvo. Apenas compreendo o incomodo que a assalta quando esse assunto vem à baila. Deve ser mesmo, constrangedor depois de tanto esforço, para pensar como branco, parecer branca, ter que lembrar que é negra e consequentemente, se posicionar diante do quadro dantesco que a maioria dos seus iguais está passando aqui e no mundo.
Para aliviar sua dor em se perceber como parte dessa engrenagem e se sentir mais à vontade, eu recomendaria (já que ela é uma mulher da televisão) que ela visse ou lesse o documentário “Eu não sou seu negro”, escrito por James Baldwin, (escritor negro norte-americano e militante dos Panteras Negras) e dirigido pelo haitiano Raoul Peck.
Nesse trabalho monumental, James Baldwin afirma de maneira categórica: “A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita”. Mas, mesmo não sendo bonita, é a nossa história e dela não têm como fugir. Creio que o sentimento de Glória Maria seja este. E isto nos incomoda profundamente pois diz respeito à gente, mesmo quando a gente não quer.
Portanto, não queiram mal a Glória Maria, considerem que ela é muito mais vítima do que algoz dessa expressão infeliz que verbalizou e utilizemos nossas energias para combater o grande vilão dessa história, que é na verdade, a estrutura racista que envolve a sociedade brasileira nos seus mínimos detalhes. E claro, vamos continuar nossa luta para que o Brasil venha a ser, algum dia, um país democrático, tanto politicamente quanto racialmente.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
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