Heróis e heroínas para brincar
Professora gaúcha desenvolve jogo de cartas com ícones negros
Muitos de nós, na infância, tivemos um rompante de querer salvar o mundo, em alguma situação. E recorríamos aos heróis americanos como inspiração. Era Mulher-Maravilha, Super- Homem, Batman, entre outros. Representatividade, que é bom, nenhuma! E foi justamente diante dessa falta de referência que a professora Perla Santos, educadora da 1º e 2º anos do Ensino Fundamental da Escola Municipal EF Mario Quintana, na periferia da Restinga, em Porto Alegre, possibilitou que seus alunos brincassem de salvar o mundo sonhando em ser personagens reais, negros, brasileiros.
Ela percebeu que bater cartinhas nos intervalos era uma das atividades favoritas das crianças e aproveitou a deixa e criou o Bafo Afro.
“Percebi que os educandos jogavam fascinados umas cartinhas, durante todo o recreio, e, às vezes, durante as aulas. Curiosa, pedi para olhar e analisar o material. Depois, pedi para que me ensinassem a jogar e foi fantástico! Cada um criou uma maneira de me explicar-me as regras. Então propus: E se criássemos um jogo nosso, com heróis que se parecem conosco? Perceberam que estas cartinhas têm heróis e personagens de games e HQs? Mas podemos conhecer a nossa história através delas! Topam? Faremos história!”.
Diante da resposta positiva, Perla Santos deu asas à imaginação, mas não foi fácil.
“Tive muita dificuldade em criar o material no meu horário de planejamento na escola. Os computadores apresentavam muitos problemas e a internet também! Trabalho 40 horas semanais, aos sábados coordeno o Movimento Meninas Crespas, faço aulas de dança e palestro. Passei muitas noites
pesquisando, montando as cartinhas. Durante as aulas pedia opinião dos alunos”, lembra.
O passo seguinte foi comprar folhas especiais, diferentes das utilizadas na escola e contou com o apoio do dono de uma lan house. Levou as folhas para a sala de aula e, com os alunos, cortou e decorou. Teresa de Benguela, Zumbi dos Palmares, Dandara e mais uma série de ícones negros foram representados como heróis num divertido jogo de cartas.
“Jogamos e foi muito potente! Ao final daquela aula, uma aluna (Alana) falou sorrindo: ‘Eu prefiro jogar
com as nossas cartinhas, pois não existe outras assim em nenhum lugar do mundo!’. Houve uma partilha de
saberes e foi de uma forma alegre!” .
Os alunos brancos receberam bem a novidade.
“Busco ações afrocentradas que atinjam negros e brancos nas minhas aulas. Quando fizemos as cartinhas, expliquei que os heróis contidos nelas são heróis brasileiros que construíram este país e não são valorizados. Conversei com os alunos brancos e expliquei que o racismo é um problema de todos e que precisamos deles para haver uma mudança. Não senti resistência, pois antes mesmo das cartinhas, já estudávamos a história negra. Percebo que toda ação voltada à negritude necessita ser desenvolvida a longo prazo para obter mudanças.” Vale destacar que, desde 2003, as diretrizes e bases da educação nacional estabelecem que os livros didáticos e as atividades em sala de aula falem sobre história e cultura afro-brasileira e indígena, nas formas das leis 10.639, de 2003 e 11.645, de 2008.
O JOGO
As partidas são em dupla, duas cartas devem ficar viradas para baixo sobre a mesa, e um jogador por vez
.deve espalmar a mão sobre a cartinha. Quem conseguir virar primeiro, pontua. No final, quem tiver mais cartas viradas, ganha. Ah, quem garantir mais figuras femininas leva a melhor. Isso porque a valorização da mulher
também é regra no jogo dos heróis e heroínas negros.
Diante do sucesso das cartas, Perla Santos – que ainda está à frente do Movimento Meninas Crespas da Restinga, que lhe rendeu o título de uma das cinco mulheres que fazem a diferença no Brasil, está criando campanhas financeiras para confeccionar o jogo e distribuir nos estabelecimentos municipais de ensino, em Porto Alegre. Ela também está criando outros jogos e disponibilizando nas redes sociais.