Inteligência negra e hegemonia branca
“Negro é arte, é cultura
Negra é fé… Axé!
Negro tem talento
Tem bravura”.
O refrão contagiante da música Batuque, A Força de Uma Raça, samba-enredo da Escola de Samba Leandro de Itaquera no carnaval paulistano de 1992, sempre vinha em minha mente quando eu pensava sobre a influência negra na sociedade brasileira, e esta composição me fazia pensar: nós, negros e negras, influenciamos o Brasil apenas na música e no esporte?
A importância de refletir sobre as perguntas acima é que sem saber das respostas que elas suscitam, podemos compreender muito pouco do mundo em que vivemos. A quase totalidade dos nossos pensamentos, de nossas convicções e também dos nossos valores, se inscreve nas grandes visões do mundo já elaboradas e estruturadas ao longo da história pelos pensadores europeus e descendentes. É indispensável compreendê-las para aprender sua lógica, alcance e implicações para o nosso modo de refletir a realidade.
Os homens brancos europeus ocidentais oriundos de um continente de pequena extensão conseguiram dominar boa parte do mundo, a partir do século 15, escravizando, pilhando, dividindo e ocupando, não sem resistência, territórios e criando uma geografia planetária onde se colocam no centro e no topo. Esta ideia é retificada nos mapas que usamos para aprender e ensinar geografia mundial. Não é por acaso que associar brancos à gente bem sucedida é tido como algo natural. Porém no geral desconhecemos a origem deste processo.
No auge do período chamado racismo científico, entre o século 18 e início do século 20 (vale lembrar, porém, que ainda hoje há cientistas que acreditam em raças e que hierarquizam a humanidade neste quesito, como o psicólogo britânico Richard Lynn que criou o mapa múndi da inteligência humana, situando a África no pior patamar) intelectuais brancos ocidentais famosos quiseram provar que os africanos estavam num estágio muito abaixo das outras “raças” defendendo que esses homens e mulheres eram animais próximos aos macacos, ignorantes, selvagens, bárbaros, feiticeiros charlatões e que a escravidão e a colonização era a forma de libertá-los da escuridão, como dizia o famoso padre Antônio Vieira no século 17.
A palavra negro foi inventada pelos portugueses assim como branco, amarelo e índio por povos europeus e assim criou-se uma hierarquia racial onde o homem branco estava no topo, o amarelo em segundo lugar, o índio em terceiro e o negro no último patamar de humanidade dentro desta visão política que tantos danos fez à humanidade.
É importante dizer que esta classificação nem sempre existiu. Os europeus já se classificaram como azuis e vermelhos referindo-se a uma hierarquia social entre os nobres – que se beneficiavam dos privilégios do sistema e não tomavam sol por viverem encastelados e aparentarem suas veias azuis na face como fator de diferenciação – e os plebeus, que mesmo com os raios solares de menor intensidade da Europa, tinham a pele mais pigmentada.
Na organização das nações o continente africano está em último lugar em muitos índices econômicos e sociais e isto também é um fator para que muitos descendentes de africanos não se identifiquem com esta região do planeta e prefiram valorizar o “mundo desenvolvido” do norte.
No concerto das “raças” (aqui uso o termo raça, por este conceito ainda permear o imaginário coletivo, mas a genética moderna comprova que somos 99,9% semelhantes e os 0,1% do nosso patrimônio genético é destinado para os traços fenotípicos externos, como cor da pele, cabelo, nariz e cor dos olhos) o homem branco criou todo um imaginário que o privilegiava: beleza, inteligência, limpeza, pacificação, liderança, organização, civilização e nomearam o outro: o negro e o índio especialmente como feio, burro, ignorante, preguiçoso, criminoso, sujo, desorganizado e incivilizado, naturalizando assim o lugar dessas populações que foram escravizadas pelos brancos em nosso país. A ciência é representada pelos brancos e amarelos, sendo este segundo grupo automaticamente associado à inteligência em nosso imaginário. Isso tem que mudar.
Carlos Machado/ Gyasi Kweisi
Historiador e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo Professor da SME-PMSP, Autor do livro Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente. É ex-bolsista da Ford Foundation (USA), articulista e palestrante.