Liderança feminina africana

Oswaldo Faustino conta a história de Kimpa Vita, grande liderança feminina que foi queimada na Inquisição por pregar um cristianismo africano

 

TEXTO: Oswaldo Faustino | Ilustração: Serge Diantantu | Adaptação web: David Pereira

Kimpa Vita, grande liderança africana | Ilustração: Serge Diantantu

Kimpa Vita, grande liderança africana | Ilustração: Serge Diantantu

A liderança feminina no movimento social negro tem um sem número de referências históricas. Uma delas floresceu no início do século XVIII, no então Império do Kongo. Depois de um período de 200 anos de decadência, a situação tenebrosa do reino levou a jovem profetisa Kimpa Vita a liderar uma reação religiosa e política. Facilmente, Kimpa Vita pode ser comparada à jovem camponesa francesa Joana D’Arc, acusada pela Inquisição de bruxaria e de blasfemar. Assim como ela, a africana teve visões, cativou as massas, enfrentou guerras e irritou os ortodoxos do catolicismo. Foi igualmente acusada de heresia e executada na fogueira. A diferença é que a francesa, cinco séculos depois, recebeu o título de mártir e foi canonizada. A africana, não. Algumas de suas ideias, porém, podem inspirar a inculturação evangélica expressa nas chamadas missas-afro.

O Império do Kongo, fundado no século XIII por Ntinu Wene, seu primeiro manicongo – título do imperador –, existiu até 1914. Seus 130 mil quilômetros quadrados se estendiam pelo que é hoje o norte de Angola, a República Democrática do Congo (ex- Zaire), a República do Congo (Brazzaville) e parte do Gabão. Sua capital era Mbanza Kongo. Ao chegarem ali, no final do século XV, os navegadores portugueses encontraram uma nação que gozava de supremacia: civilização desenvolvida e opulenta, que vestia seda e veludo; soberanos poderosos, mais de 1 milhão de habitantes, terras férteis cultivadas, indústrias, tecnologia de extração do sal, produção de joias e recursos naturais, como o ouro, o cobre e o ferro. Convertido, o manicongo Nzinga-a-Nkuwu, em 1509, tornou o catolicismo a religião oficial do Império. Mudou seu nome para João I e o da capital para São Salvador. Os demais soberanos que se sucederam também adotaram nomes europeus. Porém, no final do século XVII, o Kongo vivia duas realidades: forte influência dos missionários e uma guerra civil, por disputa pelo trono ocupado por Pedro IV. Ele então abandonou a antiga capital, que foi arrasada pelos dissidentes, e se refugiou nos montes Kibangu.

Foi neste contexto que nasceu, em 1684, numa família aristocrática e católica, Kimpa Vita, batizada Beatriz. Em 1704, aos 20 anos, ela teve uma experiência de quase morte. Ao se recuperar, afirmava que Santo Antônio de Pádua havia reencarnado em seu corpo. Percorreu todo o território difundindo uma forma de sincretismo religioso, denominado Antonismo. Dona Beatriz, como passou a ser chamada, pregava que o Kongo era a Terra Prometida, que Jesus Cristo havia nascido em São Salvador e sido batizado em Nsundi. Também afirmava que a Virgem Maria e São Francisco eram originários do Kongo. Questionava a alvura dos anjos que, em suas visões, eram negros. E acreditava que o império só reencontraria a paz com a partida dos europeus, que espoliavam os africanos dos seus bens e da sua humanidade. Tanto Pedro IV quanto o general Pedro Constantino da Silva, seu adversário político, sonhavam em ter Dona Beatriz como aliada. Mas diante da ameaça a seus privilégios, os missionários capuchinhos, sob a liderança do italiano Bernardo di Gallo, convenceram o manicongo do perigo que representava a popularidade da jovem e suas teorias contra o eurocentrismo. Acusada de heresia, Kimpa Vita teve a sua prisão decretada. Ela se refugiou na floresta com seus aliados. Foi presa dias após dar luz a um menino. Interrogada por di Galllo, afirmou que seu filho vinha do céu e seria o salvador de seu povo, o que foi utilizado como prova da suposta heresia. Em 2 de julho de 1706, Kimpa Vita foi queimada na fogueira da intolerância religiosa e da dominação política. Hoje, em Angola, há uma universidade com seu nome.

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