Lixo? desculpem, ela é um luxo!
Por Flávia Cirino
Uma mulher negra, de cabelo étnico, vai a uma clínica odontológica na Baixada Fluminense, para realizar uma cirurgia. A recepcionista pede que ela guarde os sapatos e a bolsa em um saco de lixo. Em seguida, estende outros dois sacos.
“Esses aqui são para você vestir. E como seu cabelo é volumoso e não cabe em uma touca, você vai ter que colocar um saco nele também’”, disse a atendente.
Ao questionar o profissional sobre a necessidade dos EPIs (Equipamento de Proteção Individual), como o jaleco descartável que ele usava, o cirurgião-dentista se esquivou.
“É só um saco plástico, eu não entendo de regularização”, disse.
A mulher negra em questão era Cris Boneta, esteticista especializada em pele negra. Vestida literalmente de lixo, da cabeça aos pés, ela registrou o revoltante momento e postou nas o racismo e a falta de higiene. Com o barulho feito, empresas entraram em contato. Uma delas, com uma mãe e filha negras à frente do negócio, cativou Cris.
Juntas criaram uma touca descartável para cabelos black power, adequada para acomodar também tranças e dreads. Ela, então, propôs a criação de aventais descartáveis inspirados na modelagem de jalecos de tecido, de diversos tamanhos, para os corpos excluídos, fora dos padrões.
Com a repercussão, veio também o pedido de desculpas. Cristiane acionou o Conselho Regional de Odontologia do Rio de Janeiro (CRO-RJ) e seguiu com a denúncia ao consultório.
“O processo está em fase final de confecção para ser dado entrada. Tenho feito tratamento com terapias, porque realmente fiquei muito abalada. Mas, profissionalmente, reverti essa situação em solução para nossa população negra que precisa de mais atenção”, conta.
Por conta do caso, alguns conselhos de saúde mudaram suas normativas internas, atentando à diversidade de público, já que não existe cliente padrão.
“Nunca atentamos para isso antes. Recebi vários relatos de pessoas que passaram por situação parecida antes na área da saúde”, disse.
CLIENTES 99% NEGRAS
Há 12 anos na estética, Cris se dedica há 7 anos ao atendimento ao público negro. Uma decisão tomada ao perceber que faltavam produtos, tratamentos e representantes específicos.
“Comecei em um bairro elitizado na Baixada Fluminense (25 de Agosto, em Duque de Caxias), onde a grande maioria é de cor branca. Aos poucos os pacientes negros começam a aparecer com algumas queixas particulares. Neste caminho observei que não era só estética e sim tratar a alma dessas mulheres negras e elevar a autoestima. Eu me via em várias histórias contadas ali”, destaca.
Determinada, Cris se esmerou no atendimento, estudando cada particularidade, esbarrando na carência de livros e artigos científicos para referência da pele negra. Os resultados satisfatórios ganharam as redes sociais, o atendimento para 99% de clientes negros de todas as regiões. Cris tem clientes que viaja horas para ter atendimento.
Mas, como sempre, não foi nada fácil driblar as adversidades “Quando fazia atendimento home care na Barra da Tijuca (bairro nobre da Zona Oeste do Rio de Janeiro), sempre perguntavam se eu era babá. Já na clínica, no início, as clientes brancas quando me viam na recepção, de jaleco, perguntavam pela esteticista. Quando eu dizia que era eu, algumas inclusive iam embora. Mas isso nunca me abalou.
Ainda acontecem algumas situações sutis, mesmo com pacientes negras. Há quem duvide da minha capacidade, mas é a minoria. Meus resultados falam por mim.”
NOVOS CAMINHOS
Determinada a seguir em constante evolução, Cris Boneta reativou seu canal no YouTube, o Coisas de Cris Boneta, no qual fala sobre tratamentos e cuidados para pele negra e questões raciais. Além disso, prepara o projeto social Afroboneta, para elevar a autoestima de mulheres negras de baixa renda e mães solteiras. E pretende ainda lançar um curso de empreendedorismo para todas as áreas, ensinando a montar o próprio negócio.
“Antes de ser esteticista já trabalhei em outros ramos, inclusive fui vendedora ambulante de praia.”