Mãe de jovem negro morto na Bahia é processada por criticar a PM

Ações de pedidos de indenização e acusações de injúria e difamação são movidos por quatro PMs do 5º Batalhão da cidade de Euclides da Cunha, dois deles indiciados pelo assassinato de Pedro Henrique em 2018; postagens nas redes sociais feitas por Ana Cruz teriam motivado processos

A professora e escrivã da Polícia Civil Ana Maria Cruz, 55, se diz “perseguida” e “intimidada” ao descrever ao menos quatro processos judiciais movidos por policiais militares contra ela desde 2019, quando iniciaram as investigações do assassinato do filho e ativista Pedro Henrique Santos Cruz, 31, ocorrido em dezembro de 2018, na cidade baiana de Tucano.

Dos três policiais militares suspeitos de terem cometido a execução do ativista, dois ingressaram com pedidos de indenização por dano moral: os soldados Bruno de Cerqueira Montino e Sidiney Santana Costa, que atuam na 2ª Companhia do 5º Batalhão da PM de Euclides da Cunha, município vizinho a Tucano. No caso de Sidiney, que pediu R$ 35 mil, o processo foi extinto por incompetência territorial pelo juiz Matheus Martins Moitinho, já que tanto o policial como a professora não residem na cidade de Euclides da Cunha e que, por isso, ele argumenta, a vara não poderia dar prosseguimento ao caso. O PM tentou recorrer, mas não teve decisão favorável.

A reportagem não conseguiu acessar nenhuma documentação e petições, já que os sistemas usados pelo judiciário baiano (PJE, PROJUDI e E-SAJ) apenas permitem que as partes do processo acessem os autos. A última movimentação no processo movido pelo soldado Bruno é de que uma audiência virtual que aconteceria em abril não foi realizada.

Dentro do inquérito policial que apura o homicídio de Pedro, ao qual a Ponte teve acesso, o capitão Duarte Gomes da Silveira, então comandante da 2ª Companhia da PM de Tucano, subordinada ao 5º BPM, anexou aos autos um ofício com cópia para o Ministério Público Estadual e para o comando do batalhão, datado de 10 de fevereiro de 2019, no qual reúne uma série de postagens feitas por Dona Ana no Facebook, incluindo links de reportagens que ela compartilhou sobre o caso – sendo alguns desses links, matérias e um editoral da Ponte, publicado na newsletter em 28 de janeiro de 2019 e que tratava do assassinato do jovem.

Nesse documento, Duarte Gomes afirma que as publicações “atingem a imagem e a honra” dos policiais militares do 5º BPM e da 2ª CIA de Tucano, imputando crimes e “falsas acusações” contra os PMs Sidiney, Bruno e Alex Andrade de Souza, “instigando de maneira desnecessária, parcial e danosa órgãos de imprensa e de investigação correcional e criminal contra profissionais de segurança pública, movimentando a máquina estatal em razão de suas convicções pessoais”.

Segundo a Defensoria Pública da Bahia, que auxilia Ana Maria, Duarte Gomes entrou com uma interpelação judicial, ou seja, um pedido de explicação pelas postagens e, depois, com uma queixa-crime que se transformou numa ação penal por difamação e injúria, aberta em agosto de 2019. O processo está em tramitação e a última movimentação, de abril deste ano, informa que o Tribunal de Justiça está aguardando a regularização de prazos e audiências que haviam sido suspensas por causa da pandemia. Desde março deste ano, ele passou a comandar o 5º BPM.

O capitão Alex Andrade de Souza, lotado no 5º BPM, também move processo também por injúria e difamação contra Ana Maria. A reportagem também não conseguiu acessar o conteúdo dos autos. A ação penal foi aberta em 2019, assim com as dos outros policiais, sendo que, em 16 de julho, foi feita uma audiência na qual não houve conciliação. Todos eles são representados pelo mesmo advogado: Carlos Kleber Freitas de Oliveira o qual, procurado pela Ponte, disse que não se manifesta sobre processos que atua que estejam em andamento e negou pedido de entrevista.

Em 2013, foi aberto um inquérito policial contra Alex após Pedro ter denunciado uma abordagem que ele e o PM Edvando Oliveira Cerqueira teriam cometido. Em consulta ao site do Tribunal de Justiça da Bahia, o inquérito consta como arquivado e extinto em 2016, sem informações sobre movimentação. Em janeiro de 2019, a Ponte informou sobre o episódio. Segundo Ana Maria, Pedro foi ameaçado por Alex. “Quando o policial saiu do fórum, logo depois da audiência em que ele foi condenado a pagar uma multa, ele teria dito a Pedro: ‘este dinheiro que você me fez gastar, vai lhe custar caro’. Seis anos depois, a promessa se cumpriu”, disse a professora, na ocasião. Na época, Pedro divulgou os abusos nas redes sociais e o então tenente Alex moveu uma ação por injúria e difamação em 2013. Na decisão judicial, Pedro entrou em um acordo, apagou as postagens e prestou serviços à comunidade.

Em 2019, a Ponte teve acesso a uma série de termos de declaração feitos no Ministério Público e assinados por Pedro entre 2014 e 2018. O ativista denunciou abusos da PM em pelo menos quatro oportunidades ao MP. Em setembro de 2014, por exemplo, Pedro compareceu ao MP e informou que havia sido abordado de forma violenta e relembrou que, em abril daquele ano, um homem de nome Aderbal, que havia presenciado a agressão contra Pedro em 2012, foi morto. Na ocasião, o ativista assinalou que acreditava que a motivação foi “preconceito do Tenente Alex, que comandava a operação, por ele ser usuário de maconha e adepto da cultura ‘Rastafari’.”

Na ocasião, Pedro informou também à promotoria as tentativas do tenente em desqualificar a “Caminhada pela Paz”, criada pelo ativista, ao dizer, sem nenhuma prova, que havia envolvimento com tráfico e que o evento era financiado por facções criminosas. Alex Andrade chegou a ser apontado como um dos suspeitos pelo assassinato do ativista, mas não foi reconhecido pela testemunha que presenciou a ação dos atiradores.

A defensora Valéria Teixeira diz que todos os processos tratam das postagens em redes sociais feitas por Ana e que acredita que os policiais moveram as ações de forma coordenada. “As alegações, as situações fáticas, os documentos que instruem os processos são os mesmos, os autores serem policiais que atuam na mesma região, inclusive alguns movidos por policiais que sequer fazem parte do inquérito [sobre o assassinato de Pedro], o que é estranho”, pontua. “Essas coincidências nos levam a crer que existe um lawfare [uso de leis e do sistema de justiça para perseguir alguém] por parte dos autores por se utilizarem de forma indevida dessa facilidade de acessar a justiça por meio dos juizados para poder aplicar um abuso”.

Em setembro de 2019 a Defensoria Pública oficiou a Procuradora-Geral de Justiça Ediene Santos Lousado e o Delegado-Geral da Polícia Civil Bernardino Brito Filho a fim de que a conduta dos policiais militares fosse investigada. Segundo Valéria, não houve resposta. “O inquérito [da morte de Pedro] aponta que há suspeita de envolvimento de determinadas pessoas e a mãe não pode criticar a corporação, a postura da polícia que deveria proteger a população?”, questiona a defensora.

A professora Ana Maria defende que as postagens são críticas à atuação da PM, além de uma cobrança para que o assassinato do filho seja elucidado e os responsáveis, punidos. “Eu tive o cuidado de não expor nomes nem imagens quando fiz minhas críticas e acredito que, infelizmente, outros vão tentar me processar também porque é assim com quem denuncia a violência da polícia”, lamenta. “Toda a vez que eu vou falar com jornalista sobre o Pedro, eu tenho que tomar remédio porque é muita dor, mas é necessário falar também, para que se tenha justiça, desistir disso não é uma escolha, é em respeito a tudo que o meu filho defendia.”

Ana também tinha encaminhado, no inquérito do filho, postagens que o PM Sidiney Santana havia feito na época em que ocorreu uma abordagem e prisão de Pedro sob a alegação de tráfico de drogas, mas que em audiência de custódia foi considerada ilegal pelos policiais terem invadido a residência, em outubro de 2018, dois meses antes da morte de Pedro.

Em abril de 2017, há um termo de declaração assinado por Pedro em que ele conta que o então tenente Alex foi cobrá-lo sobre a multa que teve que pagar quando condenado pela abordagem de 2012. “O declarante [Pedro Henrique] informa que o Tenente Alex disse que o declarante deve a quantia de R$ 50 mil e afirmou que é sorte o declarante não ter dinheiro para pagar”. Pedro havia sido condenado anos antes justamente nesse processo e pagou a pena com medidas alternativas.

Um mês depois, novo termo de declaração informava que os policiais Sidiney Santana e Bruno Montino estiveram no bairro Nova Esperança, onde a família de Pedro mora, e perguntaram se ele era o “rasta” que foi processado pelo Tenente Alex. “O declarante informa que teve a impressão que os policiais estavam ali para cobrar a dívida, que os policiais perguntaram se o declarante é usuário de droga ilícita e qual o significado das tatuagens”, fazendo com que Pedro ficasse praticamente nu em via pública, aponta o documento.

Ajude a Ponte!

O último termo, datado de maio de 2018, traz um relato de nova abordagem da PM, feita mais uma vez por Sidiney e Bruno, quando Pedro voltava do mercado. O ativista afirma que foi obrigado a virar de costas, colocar as mãos na cabeça, que levou chutes e sua sandália chegou a arrebentar. Os policiais também teriam mexido nas sacolas de compras e lançado para longe uma caixinha de remédios. “Sidnei mexia nos bolsos e questionava sobre as suas publicações no Facebook. Que neste momento, Sidnei pegou o seu celular que estava no bolso e jogou no chão quebrando a tela. Após isso, levou um tapa no ouvido, um soco no pescoço e disse: ‘vá tomar suas providências, porque você tem o seu advogado e eu tenho o meu’, momento em que o policial mostrou a arma para o declarante”, diz o trecho do documento do MP.

O que diz a PM

A reportagem pediu os contatos dos policiais Bruno, Sidiney e Alex ao advogado que os atende, mas ele não respondeu.

Pedimos, via assessoria da PM, entrevista com os três e questionamos se a corporação apurou as denúncias feitas por Pedro bem como sobre os indiciados, se eles estão atuando nas ruas e a postagem de Sidiney. A corporação apenas respondeu que pedidos de entrevista deveriam ser feitos diretamente aos policiais e que a investigação do assassinato deveria ser questionado à Polícia Civil. Não responderam as demais questões.

Ponte conseguiu obter apenas o telefone de Sidiney, que disse que pediria autorização de seu superior para dar entrevista, mas não respondeu depois.

No inquérito da morte de Pedro, os três policiais indiciados negam o crime.

O que diz a Polícia Civil

A reportagem também questionou a corporação a respeito da investigação do caso de Pedro e se houve apuração sobre as denúncias que ele fez em vida bem como sobre a postagem de Sidiney e o ofício enviado pela Defensoria Pública sobre os processos judiciais contra Dona Ana.

A assessoria encaminhou a seguinte nota e não respondeu as perguntas:

A Polícia Civil concluiu o inquérito e encaminhou à Justiça, com o indiciamento dos suspeitos. O Ministério Público solicitou novas diligências, que foram cumpridas e o procedimento devolvido ao MP. O trabalho de Polícia Judiciária é finalizado com a conclusão do inquérito.

O que diz o Ministério Público

O órgão ainda não se manifestou sobre denúncia, por isso, a Ponte perguntou sobre as investigações do caso, as denúncias feitas por Pedro e o ofício encaminhado pela Defensoria Pública.

A assessoria respondeu que acompanha o caso e enviou a seguinte nota:

Atualmente, existe um trabalho conjunto entre a Promotoria de Justiça local e o Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (Geosp), criado em junho deste ano, que entre as  atribuições está a de realizar controle externo da atividade policial. Quanto aos supostos abusos cometidos por PMs, há procedimentos em andamento na Promotoria local para apuração dos fatos. Todas as demandas referentes ao caso estão sendo acompanhadas pelo MP, que intensificou a atuação a partir do trabalho conjunto.

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