MULHER NEGRA: O que está por trás de sua procrastinação?
Por: Shenia Karlsson
Definitivamente, vivemos numa época em que a cobrança é um fato cotidiano, principalmente a auto cobrança, visto que somos tão exigentes com nós mesmas. Ademais, frequentemente somos incapazes de sermos generosas com nós mesmas e nos colocamos em situações de extrema exaustão. Toda segunda-feira determinamos pôr em prática novos planos, com novos hábitos, novo estilo de vida e novo padrão de pensamento, mas falhamos. E cada vez que falhamos cria-se uma enorme lacuna entre nós e um ideal de vida, muitas vezes tão longe de nosso desejo mais profundo, pois, o que é vendido como socialmente correto, parece o mais adequado a fazer. Tenho me deparado com muitos relatos de experiências de mulheres negras
em meu ambiente clínico. Essas mulheres dizem sentir-se incapazes, exaustas, impostoras e procrastinadoras inveteradas. São relatos semelhantes com características próprias considerando a diversidade e as interseccionalidades das experiências e lugares sociais em que elas se localizam. Entretanto, percebe-se um padrão onde o conflito entre funcionar e paralisar é constante. Trata-se de uma dificuldade em dar conta da vida
acompanhada de um descrédito, de uma desvalorização das conquistas e de uma dúvida eterna sobre si.
As oportunidades surgem, coisas boas acontecem, tudo parece bem até que nebulosamente o sentimento de incapacidade e dúvida instalam-se e, consequentemente, a auto sabotagem. A exaustão é um estado que aparece nesses relatos, e eu como já desconfio do que se trata, geralmente investigo mais. A mulher negra tende a se sobrecarregar em tantos níveis, na minha opinião é difícil não sucumbir em seus processos e vivências. Isso porque da mesma forma em que introduzimos o que é uma vida padrão, entendemos que enquanto negras essa vida não é para nós, porque estamos muito fora de tal padrão. O resultado são as armadilhas sutis, e caímos nelas.
O dia a dia
Toda segunda-feira é um recomeço, organizei a semana toda ontem nodomingo enquanto ouvia minha música favorita. Segunda, levantei às 6 da manhã, prometi voltar para a academia pois aquela dieta que minha nova
nutricionista passou, sem exercício de nada adianta. Malhei leve, tomei banho lá mesmo, me troquei e fui para o trabalho, eu entro às 9 da manhã, deu tempo até de tomar um suco detox e comer uma proteína. Desta vez foi o marido que levou nosso filho para a escola. No trabalho, nem bom nem ruim, o de sempre.
Correu bem o dia. No caminho de volta para casa, paro no mercado para comprar algumas coisas para o jantar. Chego em casa, dou banho no pequeno, alimento a cria e, nós, meu marido e eu, o colocamos na cama. Podemos então contar como foi nosso dia, jantarmos e aproveitar aquela série juntos até dormir. Entretanto, não sustentei essa mudança por muito tempo, é claro que falhei com a dieta, paguei a academia e não fui quase o mês inteiro e o trabalho me coloca em situações de abismo onde desencadeia vários gatilhos e crises existenciais. Hoje, estou com dificuldade de acordar, não durmo bem, o estresse me engoliu e me sinto fracassada. Só penso em fugir.
Com certeza é uma história que atravessa muitas de nós. Existe uma variação entre “tudo está bem” e “tudo está péssimo”, repentinamente. A angústia nos toma, nos engole. Mulheres negras foram socializadas para funcionar
independentemente se estão bem ou não, vistas como corpo trabalho devem produzir, e produzir mais que os outros visto a exigência de provar sempre que são mais capazes. Nessa pressão, duvidam de suas capacidades, priorizam outros em detrimento de si. Impedidas de sentirem-se livres para entrar em contato com seus próprios desejos, alienam-se, distanciam-se de si próprias, causando assim adoecimento psíquico.
A depressão de alto funcionamento e a mulher negra
De forma sutil, alguns estados psicológicos instalam-se silenciosamente de vão evoluindo caso não sejam tratados. A procrastinação pode esconder uma condição que não é muito abordada: a depressão de alto funcionamento. Diferente da depressão maior, aquela com sintomas clássicos e mais evidentes, a PPD (Transtorno Depressivo Persistente) permite que as pessoas funcionem aparentemente bem. Essas pessoas quando estão em interação são vistas como capazes: dão conta da vida, arca com todas as suas
responsabilidades, desempenham atividades e mantém suas relações sociais mas, de repente, são tomadas por uma apatia repentina e por crises existenciais.
Alguns sintomas mais leves podem ser vistos nessa condição tais como mudança no hábito alimentar (muita fome ou nenhuma), cansaço, fadiga e falta de energia, sentimento de menos valia e baixo auto estima, baixa memória, concentração, dificuldade em tomar decisões, variação de humor, apatia, tristeza, falta de esperança, distúrbio do sono, diminuição do rendimento intelectual dentre outros. Mas, será que nota-se tudo isso? Diferente da depressão clássica em que os sintomas são mais visíveis, numa depressão de alto funcionamento a mulher
negra pode estar sofrendo internamente e não demonstrar nada. É uma condição solitária, isso se dá porque são mulheres que demoram mais a pedir socorro, são caracterizadas como fortes e que não precisam de auxílio, carecem de espaços de escuta e de acolhimento. Se levarmos em consideração que em sociedades racistas enxergamos mulheres negras como “guerreiras”, essas são colocadas em situação de vulnerabilidade e adoecem psicologicamente. Quando procuram ajuda podem ser vistas como preguiçosas, incapazes, inapropriadas.
Rumo ao funcionamento pleno
O primeiro passo é reconhecer que o problema existe e talvez seja necessário uma ajuda profissional e técnica. A psicoterapia é um instrumento poderoso para dimensionarmos nossas experiências e construirmos outros repertórios possíveis. A intervenção tem como objetivo principal entender a fonte dos sintomas e reduzi-los a fim de tornar a vida mais funcional e plena. Às vezes a medicação é incluída de acordo com a opinião do médico caso seja necessário a intervenção de uma equipe multidisciplinar. De fato, hoje existem muitas formas de buscar informação e tratamento. Mulheres negras precisam se ver enquanto sujeitos merecedoras de cuidados, isso é imprescindível. Uma clínica voltada para a mulher negra prima pela valorização do desejo mais essencial
que cada uma delas tem, prioriza a segurança de um lugar único, que ela possa estar inteira sem medo de julgamentos. Um lugar de legitimação de sua existência. Estados depressivos têm tratamento e cura, caso reconheça que sofre de algum desses sintomas, procure ajuda profissional. Você não é preguiçosa e nem procrastinadora, você tem uma dor que ainda não foi tratada, olhe para ela, acolha, ela é um sinal importante.
Cuide-se, preta!
Shenia Karlsson – Psicóloga clínica, Co-Fundadora do Papo Preta: Saúde e Bem-estar da Mulher Negra.