Não seria a sessão de descarrego uma via para a cura?

“São os demônios culpados por todas as desgraças do mundo? O fato é que realmente tudo quando existe de ruim neste mundo tem sua origem em satanás e seus demônios. São eles os causadores de todos os infortúnios que atingem o ser humano, direta ou indiretamente”.

Esta afirmação encontra-se no capítulo “Os demônios e as doenças”, do livro “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios”, cujo conteúdo criminoso, racista e asqueroso será julgado em breve pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Em outra passagem afirma-se textualmente que “No Brasil, em seitas como Vodu, Quimbanda, Candomblé ou Umbanda, os demônios são adorados”.

Indo além, em 2011 um deputado federal afirmou por meio do twiter que “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, Aids. Fome…

Estas pérolas do racismo religioso e do embuste me vêm à memória quando examino os números que comprovam que a letalidade do coronavírus (surgido na China, convém lembrar) é maior entre a população negra brasileira, conforme divulgado aqui na Revista Raça.

O marcador físico “negativo”, que relega a população negra à miséria e exclusão social, que promove o genocídio da juventude negra, o assédio e a violência contra as mulheres negras teria mesmo fundamento bíblico, religioso?

No livro de Gênesis consta que “Caim mata seu irmão Abel; “E pôs o Sr. um sinal em Caim”; “fugitivo e errante serás pela terra” (Gênesis, 4: 8, 15, 12).

Durante séculos a Igreja Católica valeu-se de uma passagem bíblica para justificar o holocausto africano, o tráfico transatlântico e a escravização de dez milhões de seres humanos. Afinal, consta em Gênesis que “Despertando Noé do seu vinho, soube o que seu filho mais moço lhe fizera, e disse-lhe: Maldito seja Canaã! Servo dos servos seja aos seus irmãos (Gn. 9:24).

Talvez resida aí a explicação para o fato de que a base social das confissões neopentecostais seja essencialmente negra, possivelmente em busca de penitência por sua própria existência, pelo marcador físico que carrega.

É verdade que, guardadas raríssimas exceções, negros neopentecostais jamais ascendem à condição de pastores, bispos ou apóstolos e tampouco são exibidos como exemplos de miseráveis e endividados que em tempo recorde adquirem mansões, empresas, lamborghinis e lanchas de luxo.

Mas fato é que parte considerável da população negra brasileira, desesperada por aceitação social e para tentar aliviar o fardo social do racismo, busca renegar o legado civilizatório africano, a religiosidade afro-brasileira e o patrimônio cultural erigido por seus ancestrais com suor e sangue.

Essa subserviência, entretanto, parece não estar sendo suficiente para sensibilizar seus pastores a substituírem as sessões de debandada por sessões de descarrego, segurando o belzebu pelo chifre e quem sabe assim diminuindo o número de cadáveres de negros e brancos.

Enquanto isso, os programas religiosos continuam infestando o ar com ódio religioso, exibindo exaustivamente números de contas bancárias e raras orientações sobre prevenção ao coronavírus.

 

*Os artigos assinadas não refletem necessariamente a opinião da RAÇA, sendo de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.

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Advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, ex-Secretário de Justiça do estado de São Paulo, Coordenador-Executivo do IDAFRO - Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras e colunista da Raça

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