Negritude na ponta dos pés
Por Flavia Cirino
Benfica, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, é o berço de Ingrid Silva. Foi de lá que, aos oito anos de idade, a menina que só conhecia futebol, natação e ginástica, saiu para trilhar seu caminho. Literalmente na ponta dos pés.
Filha de uma empregada doméstica e de um funcionário aposentado da Força Aérea Brasileira, ela foi aprovada numa audição na Vila Olímpica da Mangueira e assim conseguiu uma vaga no projeto social “Dançando Para Não Dançar”. Até então, sequer sabia que o balé existia. O amor foi à primeira vista, e chegou para ficar. Passou pela renomada Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro,
aos 12 anos, e então observou que nas principais companhias praticamente só havia bailarinos brancos. Estudou ainda na escola de Deborah Colker e estagiou no Grupo Corpo, em Belo Horizonte.
Em 2007, a brasileira Bethânia Gomes, primeira bailarina do Dance Theater of Harlem na época, em viagem no Brasil, viu Ingrid dançar e sugeriu que ela fizesse um vídeo para participar de uma audição para um curso de férias da companhia. Entre as mais de 200 meninas que concorriam, Ingrid foi uma das escolhidas. Há onze anos, driblando preconceito e qualquer obstáculo, ela faz parte do elenco fixo do Dance Theater of Harlem, em Nova York. Casada, com uma agenda acirrada e empreendedora, ela está se dedicando à sua plataforma digital voltada às mulheres. Confiram o bate-papo da bailarina com a RAÇA.
RAÇA: Você é referência para meninas negras, amantes da dança. Como vê atualmente essa representatividade? Mudou muito desde que aí chegou, há 11 anos?
Ingrid Silva: Com certeza e uma responsabilidade incrível, eu tenho orgulho porque na minha época não era assim. Eu não tive esta representatividade. Por muito tempo fui a única negra nas aulas, o que para mim não era um empecilho.
RAÇA: Embora você seja a 1ª bailarina da companhia, ainda enfrenta barreiras pela cor, o mercado da dança como um todo, embora a diversidade seja uma marca da sua companhia? Como digere isso?
Ingrid Silva: Não! Neste momento não enfrento nenhum, eu fui sempre bem acolhida na companhia em que estou. Tive oportunidade e mostrei com meu trabalho onde é meu lugar.
RAÇA: A Ingrid Silva casada, realizada profissionalmente, ainda guarda quais as características da menina de 8 anos que fez o teste no projeto social da Mangueira?
Ingrid Silva: Sim, simplicidade é tudo na vida e nunca perder sua essência, esta pessoa será sempre a mesma.
RAÇA: Como surgiu a ideia de maquiar suas sapatilhas de marrom?
Ingrid Silva: O Dance Theatre of Harlem foi fundado em 1969 e Arthur Mitchell – o primeiro bailarino negro do New York City Ballet – foi a pessoa que criou este look para a companhia. Ele mudou a vida de bailarinos negros no mundo todo. O DTH é uma companhia multirracial que defende, acima de tudo, a inclusão. Há bailarinos do mundo todo. Finalmente me vi numa sala de aula com pessoas que se pareciam comigo. E foi no grupo que aprendi a técnica criada pelo Arthur Mitchell para que meias e sapatilhas cor-de-rosa não contrastassem com o nosso tom de pele e atrapalhassem “a linha contínua do corpo”. Só usamos meias cor da pele e pintamos as sapatilhas com uma base líquida para o rosto. Também parei de alisar os cabelos e me aceitei com os fios crespos; foi um processo que demorou um ano até que eles ficassem completamente livres de químicas. Aprendi a fazer um coque de um jeito natural para que consiga mantê-los no estilo black quando soltos.
RAÇA: Quais são seus planos para este ano?
Ingrid Silva: Eu criei EmpowHer New York., uma plataforma colaborativa para dar voz às mulheres reais que batalham para conquistar seus sonhos e objetivos. A ideia do projeto é criar um espaço seguro para que todas possam falar sobre suas experiências, dificuldades e conquistas, sem julgamentos, incentivando a sororidade e o diálogo. Meu objetivo é que esta seja a maior plataforma feminina do mundo. Além disso, quero dar aula para crianças que não têm acesso à arte.