O ensino brasileiro já aprendeu a lidar com o racismo?
“Seu preto sujo, cabelo de bombril”, ouviu Silvia Madeira, professora de Geografia, quando lecionava em uma escola pública em Diamantina, Minas Gerais. A declaração racista veio de um aluno pardo e foi endereçada a um colega preto. Lembrando que, segundo classificação do IBGE, os dois compõem o grupo dos negros.
Surpresa com a agressão verbal, a professora Silvia diz que assumiu a postura que todo educador deveria adotar: agir com firmeza. “Não tolero esse tipo de atitude, repreendo na hora e depois tento fazer meus alunos pensarem no significado de suas falas”, afirma. O relato de Silvia não é único e se repete nos depoimentos de muitos outros professores brasileiros.
O estado de São Paulo registra um caso de injúria racial em estabelecimentos de ensino a cada 5 dias, de acordo com dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública de São Paulo. Foram 2.873 boletins entre os anos de 2016 e 2017.
Para Sheila Perina de Souza, pedagoga e integrante do coletivo Ludere, que se propõe a discutir uma escolarização anti-racista com referências afro-brasileiras e africanas, é muito importante entender o grau de seriedade nos casos de racismo em sala de aula. “Não se trata de bullying ou brincadeira de mau gosto, estamos falando de um problema histórico. É racismo – e isso é crime”, afirma. Segundo ela, é necessário que os professores e coordenadores pontuem isso com seus alunos de forma séria e contundente.
Os casos de injúria racial estão no Código Penal Brasileiro e referem-se a ofender a honra de alguém por raça, cor, etnia ou religião. O crime de racismo está presente na Lei nº 7.716/1989 e se dá quando a integridade de uma raça é lesada. O crime de racismo é inafiançável e imprescritível. Isso não impediu que, em março deste ano, um aluno da Fundação Getúlio Vargas (FGV) fosse chamado de “escravo” ou que, no ano passado, duas professoras de Uberlândia tenham sido ofendidas em conversas em redes sociais. Também em 2017, a campanha “Meu professor racista” revelou, por depoimentos de muitos alunos nas redes sociais, situações racistas em escolas em todo o Brasil. A iniciativa, que nasceu do coletivo Ocupação Preta da USP, compilou casos de racismo não só no ambiente universitário, mas também nos ensinos fundamental e médio. São episódios que chamaram atenção para o racismo na escola, mas não devem encerrar a conversa.
Falta mais debate
Renato Maldonado, professor de História e Sociologia em escolas públicas e privadas de São Paulo, afirma que o racismo no ambiente escolar ocorre não somente através de insultos, mas muitas vezes de forma velada. “Há outros indícios no meio escolar, como por exemplo o baixo número de alunos e docentes negros”, diz.
Para ele, o Brasil ainda não superou o racismo tanto na educação pública quanto na educação privada. “Nas escolas privadas de elite, o negro é invisibilizado. Quando o negro está presente, é a empregada doméstica ou o segurança, e não o aluno”, afirma. Por contar com maioria branca entre o corpo docente e os alunos, diz ele, as escolas privadas refletem a estrutura brasileira de poder e desigualdade étnica. O que falta, segundo Sebastian Alvarado Fuentes, professor de Geografia de cursinhos pré-vestibulares em São Paulo, é ampliar a discussão em uma esfera da comunidade, envolvendo as famílias. “Ao lidar com temas como racismo, machismo, homofobia e outros assuntos considerados polêmicos, encontramos uma grande resistência por parte das famílias dos alunos”, afirma. “Mas temos de falar”.
Rosane Borges, jornalista e pós-doutora em Ciências da Comunicação acredita que esse é o caminho. “É fundamental que as famílias assumam os princípios de uma educação anti-racista, anti-sexista, não homofóbica e não transfóbica no processo de socialização dos filhos”, diz.
Na rede pública, temas como o racismo são discutidos geralmente em reuniões pedagógicas. Em sala de aula, alguns professores levantam a questão com os alunos, mas não com a força e a frequência que se poderia esperar. Um levantamento feito pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) apontou que 24% das escolas não abordam a questão em projetos temáticos – ou seja, um universo de 12 mil escolas espalhadas pelo país.
Desde 2003, com a Lei nº 10.639, as escolas públicas e privadas são obrigadas ensinar história e cultura africana e afro-brasileira. Na prática, porém, há a resistência de pais e escolas em discutir certos assuntos por julgarem os temas polêmicos.
No caso do professor Renato Maldonado, que já lecionou na rede pública estadual, o tempo de duas horas semanais gasto em atividades extracurriculares garantiu um aprofundamento nas discussões sobre temas que os professores julgavam importantes. “Trabalhei em uma escola na zona oeste de São Paulo e a coordenação era muito preocupada em discutir temas como questões de gênero e racismo, o que foi positivo. Tudo vai depender da figura da coordenação pedagógica”, explica.
Para Sheila Perina de Souza, o conhecimento histórico é um instrumento importante contra o racismo e o preconceito. Ao recontar a história a partir da perspectiva de grupos oprimidos, como aconteceu com o movimento de libertação negro, pode ajudar o aluno a entender o racismo não como uma prática de hoje, mas algo historicamente construído.
A escravidão, no caso, deveria ser pensada e refletida não apenas em datas comemorativas, como o 13 de maio. “Temos que tirar a ideia da princesa Isabel como libertadora e centrar na luta dos escravos e abolicionistas”, diz Maldonado.
A aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) cria uma certa apreensão entre os que defendem a discussão sobre o racismo na sala de aula. Na BNCC do Ensino Médio, não há previsão de eliminar nenhuma disciplina. Mas o professor Sebastian Fuentes acredita que a Base pode acabar invisibilizando discussões em pauta na sociedade, de acordo com o que for priorizado nos circuitos formativos. “A BNCC pode garantir uma maior liberdade e flexibilidade de assuntos. Porém, também pode levar a uma falta de reflexões sobre o racismo dentro das disciplinas eletivas, como Geografia, História, Sociologia e Filosofia”.
Fonte: Nova Escola