O futebol de várzea
Veja a história do futebol amador e saiba qual o cenário atual da várzea
TEXTO: Roseli Machado | FOTOS: Stock Foto | Adaptação web: David Pereira
A mudança de direção que o futebol toma na atualidade fica cada vez maisclara, na medida em que “se torna cada vez mais embranquecida a torcida, ou cada vez menos negra a participação nos campos profissionais pelo país”. Isso também se justifica pelas atuais fontes onde se busca jogadores para ingressarem nos corpos profissionais das equipes. Os grandes times preferem jogadores profissionalizados e investem na estrutura de formação de seus próprios clubes e agremiações. Por outro lado, as chamadas “escolinhas de futebol” destacam-se principalmente por serem pagas, limitando muitas vezes o acesso de jovens pobres e negros desprovidos de recursos econômicos.
Isso contrasta com a realidade do futebol de várzea, termo originariamente referente aos times e associações surgidas às margens do Rio Pinheiros, em São Paulo. O futebol de várzea tem como característica ser tipicamente amador, principalmente levando-se em conta que seus participantes normalmente trabalham em outra atividade o dia inteiro.
Organiza-se em campos feitos em locais abertos, principalmente pela iniciativa de negros e pobres das diversas localidades para onde foram se expandindo, dentro e fora da cidade. O bom nível técnico é outra marca damodalidade. Foi essa qualidade que levou a maior parte dos grandes craques aos times de expressão em todo o Brasil.
Com criatividade, as associações e comunidades em torno dos campos de várzea conseguem driblar as “precariedades” enfrentadas, como os campos sem grama – “o terrão”, como costumam dizer, que se transforma facilmente no “lamão” aos primeiros pingos de chuva -, equipamentos surrados (redes, bolas, fardamento), sem muitos melindres ou etiquetas. Ali, são desenvolvidas as jogadas mais incríveis (tanto as melhores, quanto as mais toscas), fruto da espontaneidade despreocupada de quem não tem que se preocupar com câmeras televisonando em rede planetária todos os lances e até os lábios dos jogadores. São ainda essas inovações e gafes que constroem o histórico da várzea nas comunidades em que estão inseridas, e que, infelizmente, encontram-se em declínio. Essa forma de vivenciar o futebol acaba lentamente sendo dizimada por outros interesses – econômicos ou sociais – e, mais uma vez, negros e pobres sofrem as consequências e acabam excluídos. Isso é devido a inúmeros fatores, como a expansão imobiliária, principalmente nas áreas centrais e regiões nobres da cidade. Exemplo disso é o bairro do Itaim Bibi, em São Paulo. Há registros de que haviam ali mais de 30 campos de várzea que, pouco a pouco, foram sendo substituídos por obras públicas e grandes conglomerados imobiliários, a partir da hipervalorização dos terrenos na região. Para onde foram os craques e seu futebol cheio de manhas, dribles e embustes? Para cada vez mais distante, nas áreas da periferia – muitos deles transformados em equipamentos semipúblicos em parcerias com entidades e agremiações locais.
Outros sobrevivem e, apesar da falta de investimentos e de se tornarem mais escassos pela cidade, mantém algumas tradições com o esforço das próprias comunidades, que estimulam o encontro de amigos, momentos de lazer e descontração, articulação social, além de manter os jovens em atividade e longe da tão conhecida violência urbana. Buscam, assim, apoio de entidades públicas e privadas para a manutenção dos campos (minimamente campo, alambrados e vestiários) e das equipes. Para isso, organizam ou participam de torneios, festivais e campeonatos. O maior deles reúne em São Paulo cerca de 400 times que concorrem em duas divisões, além de promover disputas em cidades como Belo Horizonte e Porto Alegre.
O documentário “Futebol de Várzea”, de Marc Dordim (2011), que participou da mostra “É Tudo Verdade”, relata essa experiência a partir da visão de quatro personagens: um ex-jogador profissional que começou na várzea e a ela retornou, um jovem com aspirações de craque, um árbitro e um time da comunidade.
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