O negro na música lírica

Veja a trajetória de David Marcondes, um dos maiores cantores de música lírica do Brasil

 

TEXTO e FOTOS: Renato Bazan | Adaptação web: David Pereira

O cantor lírico David Marcondes | FOTO: Renato Bazan

O cantor lírico David Marcondes | FOTO: Renato Bazan

Quem olha para ele não acredita: negro, atlético, com cara jovem e aquele jeito mineiro de falar, David Marcondes não tem, nem de longe, a aparência imaginária de um barítono da ópera. Nem mesmo a idade aparenta, com seus 43 anos parecendo mais 35. “Mas a barba é branca, viu? Já tô ficando velho!”, ele brincou, durante a conversa que teve com a Raça Brasil em um botequim próximo ao Theatro Municipal, em São Paulo.

Cantor lírico consagrado com 10 anos de carreira, Marcondes recebeu a Raça pouco antes de partir em turnê pela Europa com a peça “Aida”, do italiano Giuseppe Verdi. Sua empolgação com o trabalho não foi difícil de notar, já que interpretaria o temível Amonasro, rei da Etiópia. “Ele é um personagem que é um guerreiro negro, e nenhuma outra ópera tem isso. A preparação para ele é a história do negro na África”, explicou. Um pouco mais para frente, foi além: “É o papel da minha vida!”.

Popularmente falando, Marcondes é mais conhecido por ter sido o cantor da trilha sonora na novela global “Terra Nostra”, em que cantou a famosa “Non Ti Scordar Di Me” em dueto com Paulo Szot. No mundo da música erudita, porém, sua lista de conquistas é bem maior, em especial depois de seu ingresso no Theatro Municipal de São Paulo. Apenas em 2013, o cantor lírico interpretou papéis em “Jupyra” e “Cavalleria Rusticana”, além de ter dado recitais em solo em diversas ocasiões. Antes disso, recebeu prêmios de grande importância, duas vezes no festival Bidu Sayão e outra no Maria Callas. E a lista continua.

Apesar de tudo isso, quem olha para o cantor hoje, já estabelecido como barítono do Theatro Municipal de São Paulo, não imagina que até seus 20 anos Marcondes jamais se viu cantando profissionalmente, quanto mais em óperas. Sua paixão, desde pequeno, sempre foi o desenho, e a ambição o levou a estudar na respeitada Fundação Mineira de Arte durante a década de 90. Sempre animado, ele brincou: “Se eu tivesse vendido os meus desenhos, hoje eu estaria milionário! Tem muito carro que tá por aí, avião, trem, que eu já tinha pensado naquela época”. Mas não era para ser.

David Marcondes em cena | FOTO: Renato Bazan

David Marcondes em cena | FOTO: Renato Bazan

A trajetória incomum de David se mistura com a de um Brasil que, hoje, já não existe mais. Nascido em 1970 no interior de Minas Gerais, filho e neto de funcionários do serviço ferroviário federal, o garoto gozou de educação e saúde bancadas pelo governo. A mãe era professora de música. Caso raro, pertencia a uma família negra que não enfrentava os desafios da pobreza e, como resultado, saiu da infância com formação suficiente para perseguir a carreira de desenho, que já amava desde tenra idade.

Foi para o Rio de Janeiro ainda pequeno, mas nunca perdeu o sotaque de sua terra natal nem o contato com a Igreja Batista. Cantou em corais desde sempre. Apesar das brincadeiras por causa de seu jeito de falar – era chamado de “fábrica de ‘s’ pelos cariocas –, nunca passou por casos de discriminação ou preconceito que marcassem a memória, e chegou à adolescência relativamente afastado de agressões desse tipo. Seu grande talento foi exposto quando passou a cursar desenho no SENAC. Em pouco tempo, chegou ao status de consultor informal da turma, oferecendo aconselhamento e ajuda técnica a colegas. A situação continuou até se tornar motivo de rixa com o professor, e um belo dia Marcondes se viu expulso do curso por “excesso de faltas” depois de reproduzir um caça militar, peça por peça, em seu tempo livre. Foi nessa ocasião que Marcondes considerou, pela primeira vez, ingressar em uma universidade. Sob influência da família, encontrou a Universidade do Estado de Minas Gerais, cuja Fundação Mineira de Arte serviu de escola para seu talento nato. Entrou sem dificuldades, mas encontrou o racismo estampado na cor dos alunos: apenas dois negros, entre centenas de estudantes.

Sua pacata vida de universitário seria remexida dois anos depois, com a chegada do cantor lírico brasileiro Amin Feres. Vindo da Alemanha, Feres voltou para Minas Gerais decidido a formar um grupo operístico no coração do estado, e logo abriu inscrições para interessados em aulas de canto lírico. Foi então que Elizete Gomes, tia de David e cantora de ópera, viu a chance de dar um rumo diferente para o sobrinho, e pressionou-o a tentar uma audição. “Eu não estava interessado, mas ela ficou em cima até eu ir fazer. Fui, fiz o teste com o Amin [Feres], e no final ele me disse: ‘Você tem que ficar, tem um timbre de voz muito raro’. Eu nem liguei”, contou.

Marcondes cantava desde pequeno por causa de sua participação na Igreja Batista, mas o fazia apenas como ato de fé. Depois que atingiu idade suficiente, passou a participar do coral itinerante de sua tia Elizete, mas nunca havia considerado a possibilidade de seguir carreira no ramo. “Quando você quer adorar alguma coisa que é grandiosa, você quer cantar! É muito comum você ver grandes talentos, principalmente nos Estados Unidos, que saem da Igreja Batista, porque ela tem essa cultura de canto. Mas isso não quer dizer que todo batista queira ser cantor”, explicou. O professor Amin Feres não aceitou bem a recusa. Fez a faculdade oferecer não uma, mas duas bolsas de estudo integrais para Marcondes, desde que ele participasse de suas aulas de canto lírico. Grande demais para ser ignorada, a oferta fez David incluir a nova atividade na agenda, mas chegou a faltar por semanas em alguns períodos. Em um ano, aprendeu apenas três obras, até ser involuntariamente inscrito no Concurso Internacional Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Feres queria mostrar ao estudante o glamour e a emoção das performances competitivas,e então o mandou “como mascote da turma”.

“O negro não sabe da capacidade que tem. Se ele soubesse da capacidade vocal que tem, estudaria música erudita e não ia ter pra ninguém" | FOTO: Renato Bazan

“O negro não sabe da capacidade que tem. Se ele soubesse da capacidade vocal que tem, estudaria música erudita e não ia ter pra ninguém” | FOTO: Renato Bazan

De forma inacreditável, Marcondes passou as três primeiras fases da competição usando as únicas músicas que conhecia, superando veteranos de todo o país. A surpresa foi tanta que o mestre, em êxtase, pegou um voo de última hora para o Rio e obrigou-o a treinar por 24 horas as duas peças que apresentaria na final. No dia, fez tudo por instinto. Terminou em quarto lugar, suficiente para receber um prêmio. “Acho que foi uma daquelas coisas que Deus faz quando ele quer falar para a gente: ‘É isso aí que eu quero que você faça’. Aí deu um nó na minha cabeça”, contou à Raça, pensativo. Gradualmente, o curso de design perdeu importância em sua vida. Pouco após o concurso, saiu em turnê com a turma da Universidade para cantar pela Europa, o que o prejudicou nos estudos. Quando voltou, o estado de Minas Gerais abriu concurso público para cantores líricos, num total de cinco vagas. Apesar das várias etapas e da altíssima exigência, David conseguiu uma delas, e tornou-se funcionário público, afastando-se ainda mais de seu curso original. Foi inevitável: nunca terminou o curso de design, apesar de ter chegado ao último ano.

Dois anos depois, encontrou o derradeiro teste: abriu-se um concurso no Theatro Municipal de São Paulo, o mais exigente na música erudita nacional. Com apenas duas vagas, a concorrência seria implacável, e David ainda teve sérias inflamações na garganta pouco antes da disputa. “Por milagre”, como ele mesmo diz, passou, e se tornou um dos que hoje cantam no Municipal. As premiações internacionais que vieram depois foram todas por conta de seus trabalhos ali.

“A ópera é um meio elitizado. Não tem história, ela é! E para o negro chegar aqui é muito difícil. As aulas de canto são muito caras, as escolas são abarrotadas!”, desabafou David durante nossa entrevista, mais de uma vez. É uma questão que o atordoa constantemente: dos 90 cantores líricos efetivos do Theatro, três são negros. Pior: até seu nome ser associado com produções internacionais, muitos colegas o provocavam com convites para que se tornasse cantor de pagode. O episódio mais traumático, nesse sentido, se deu quando um colega veterano com o qual David dividiria o palco interrompeu um ensaio e perguntou: “Por que esse macaco está olhando pra mim?”. Revoltado, David pegou-o pelo colarinho e, gritando, se impôs. “Ninguém falou nada, ninguém me defendeu ali. Falaram: ‘Ele é italiano, não tem jeito’. Foi horrível, mas o sangue subiu. Depois ele até veio pedir desculpas, mas eu nem quis conversa”, conta. “Como as crianças negras podem querer fazer isso se elas só veem brancos cantando? A questão é que eles não querem o negro aqui, eles querem o negro lá [excluído]. Quando eu fui gravar [“Non Ti Scordar Di Me”] na Som Livre, ninguém acreditou. Acharam que tinha um homenzinho cantando dentro de mim, o pessoal ficou bobo”, lembra. O mesmo questionamento foi feito pelo contrabaixo Luiz-Ottávio Faria, brasileiro que atua no exterior, quando visitou o Brasil em 2012: “Que estranho esse país, negro não compra carro, não compra roupa, não compra nada”, comentou, em relação à falta de representação do negro nos comerciais de TV. Marcondes imagina que, para reverter-se esse quadro, seria necessário um projeto que buscas se incluir nas programações operísticas também o “afro erudito”, como chama. Ele cita o compositor Francisco Mignoni como exemplo de músico que, embora tenha criado material de mesma qualidade que seus correspondentes europeus, nunca teve o reconhecimento merecido. Mignoni criou óperas e balés contando a realidade brasileira por quase 60 anos, pondo o negro em evidência. Além dele, outras inspirações como o barítono americano Simon Estes e as irmãs brasileiras Edineia de Oliveira e Edna D’Oliveira convenceram Marcondes de que, quando o assunto é canto lírico, os negros têm lugar garantido. “O negro não sabe da capacidade que tem. Se ele soubesse da capacidade vocal que tem, estudaria música erudita e não ia ter pra ninguém. O que você vê na televisão é o negro cantando pagode, o negro cantando samba, isso e aquilo, mas nunca música erudita. E justamente nela, as cordas vocais, a força física e as cavidades vocais seriam perfeitamente ajustadas… mas ele não sabe disso! Como negro, eu posso mostrar para os outros que é possível”, explicou à Raça. Sua animação com o assunto é contagiante: antes mesmo do término de nossa conversa, David já falava sobre uma ideia que acabara de ter, de montar um grupo afro de ópera. E, num futuro mais distante, contracenar com ele “Carmen”, de Bizet, ou “Fausto”, de Verdi. Isso, sim, chamaria a atenção.

 

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