O negro no Rio de Janeiro
Filme “O inventor de senhos” retrata o negro inserido no Rio de Janeiro na época da Coroa Portuguesa
TEXTO: Renato Bazan | FOTO: Divulgação | Adaptação web: David Pereira
Em 1808, desembarcou na orla do Rio de Janeiro a corte portuguesa, menos por alinhamento político do que por terror das invasões napoleônicas. Encontraram no Brasil aquilo que já não tinham em Portugal: espaço para crescer, uma elite mais dócil, um grande contingente de trabalhadoresa serem explorados, a maioria de escravos. Não podiam esperar, porém, que a chegada do núcleo do poder trouxesse junto o desejo da liberdade, como se conclamaria sete anos mais tarde pela declaração do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
O espírito de progresso traria mais tarde a própria independência brasileira e todo o movimento abolicionista. Este trecho histórico entre 1808 e 1821 é o que pretende retratar o longa-metragem “O Inventor de Sonhos”, de Ricardo Nauenberg (“Os Sete pecados do capital”, “Alucinação”), lançado em 2013 em todo o Brasil. Já acostumado à linguagem televisiva, o diretor inovou no formato que adotou para o filme, abandonando a linguagem da época em favor de um falar mais contemporâneo, com apenas leves toques do português oitocentista. A trilha sonora seguiu o mesmo padrão, diminuindo o papel da música daquele tempo para dar lugar a uma “ópera rock instrumental”, nas palavras do diretor.
“Não é um filme com linguagem naturalista, ele se inspira na pintura e literatura para contar uma história simples e humanista, de forma estilizada”, explica. O longa conta a história de José Trazimundo (Ícaro Silva), um garoto mestiço, filho de uma escrava com um europeu, que sai embusca do pai. Por 13 anos, alia suas buscas ao trabalho para os portugueses e aproveita a ajuda do jovem lusitano Luis Bernardo (Miguel Thiré), amigo desde cedo. O conflito da história se dá de três formas diferentes, em nível pessoal, racial e político. Enquanto José e Luis passam a lutar pelo amor da mesma mulher, a escrava Iaínha (Sheron Menezzes), o Reino recém-formado encara a ameaça de desmantelamento pela volta da Coroa a Portugal e uma grande agitação social segue. Em meio a tudo isso, o sofrimento dos escravos e os primeiros confrontos abolicionistas são retratados de forma bastante dramática, resgatando a tensão étnica da época.
Uma das grandes apostas do filme é na escolha do narrador, o jovem Trazimundo. O fato de ser filho de escrava e homem branco durante o período escravocrata lhe confere um ponto de vista à parte das divisões sociais. Nauenberg explica que, “curiosamente, a figura do mulato não era de ‘bicho’, como o negro, pois podia ser filho de alguém importante. Dessa forma, trafegava com razoável desenvoltura entre brancos, negros, senzala ou sobrados. Era o livre ‘espiador’, e por isso é dele a crônica dos costumes, da família real ao mercador de escravos”.
A visão de um narrador negro naturalmente é tingida no filme pelo ressentimento com a escravidão, e isso é ilustrado incisivamente pelas cenas de violência que pontuam o longa-metragem. O filme carrega alguns momentos de forte violência racial, alinhadas com o que seria esperado para a época, mas não se trata de agressão gratuita – todos os eventos foram avaliados pela antropóloga Lilia Schwarcz para que representassem, na ficção, a realidade do século XIX. O mesmo cuidado foi dado à parte gráfica do filme, que passou por um trabalho muito extenso de computação gráfica para recriar os ambientes do Rio de Janeiro Imperial. Entre as cenas de tomada ampla que pontuam a obra, Nauenberg explica que o trabalho para recriar a cidade teve longa pesquisa, incluindo consultas a trabalhos de pintores famosos como Debret, Rugendas, Thomas Ender e Eduard Hildebrandt, além do livro “O Império À Deriva”, de Patrick Wilken. As pinturas e anotações dos artistas forneceram as informações que deram base à reconstrução de cenário, reconstituído em uma pequena vila cenográfica na cidade de Paraty, e de figurino, cedido majoritariamente pela Rede Globo a pedido do diretor.
Além dos protagonistas Ícaro Silva, Miguel Thiré e Sheron Menezzes, “O Inventor de Sonhos” conta com as performances de Stênio Garcia, Ricardo Blat, Guilhermina Guinle, Emilio Orciollo Neto, Leticia Spiller e Debora Nascimento, todos envolvidos em eventos paralelos à trama principal. A narração jocosa de Ícaro é o ponto que une todos os personagens, mesmo que distantes, como num “Forrest Gump do século XIX”, amarrando crônica por crônica até o clímax da produção.
O RIO IMPERIAL
A ideia central para “O Inventor de Sonhos” nasceu da comemoração dos 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil. “Verificou-se que não existiam documentos audiovisuais para se comunicar a nossa História e Cultura de forma simples e atrativa. O projeto foi imaginado como um esforço maior, como uma plataforma de conhecimento onde o filme é uma parte”, explica Nauenberg. Segundo o diretor, a introdução de conteúdo de internet associado ao filme seria uma forma de perpetuar o conhecimento do longa-metragem por meio de ações interativas e questionários – uma “plataforma de educação e entretenimento”.
Com toda a meticulosidade histórica aliada a uma linguagem que não apresenta as complicações que filmes de época acarretam, a impressão é de que Nauenberg criou “O Inventor de Sonhos” como um pretexto para mergulharmos no século XIX, mais como turistas do que como espectadores. A personagem principal passa a ser a cidade do Rio de Janeiro, cujos ambientes e personagens são tornados mais interessantes pelo falar contemporâneo.
Ao colocar o elemento racial como conflito primordial de “O Inventor de Sonhos”, o diretor aproveitou sua representação do Rio oitocentista para acrescentar um tema normalmente excluído desses retratos históricos: o do negro como sujeito ativo da história. No filme, José Trazimundo não é apenas testemunha, mas participante da agitação social rumo à Independência – é uma ressignificação do papel histórico do negro. “Além do mergulho na história, o filme é uma reflexão sobre tolerância. Esse período representou muitos progressos para o status do negro, como a promulgação da Lei do Ventre Livre, etc. O discurso é claramente humanista, a cor é um fator que nem deveria ser notado. Infelizmente não era assim”, concluiu Nauenberg à Raça.
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