Palmares: “A felicidade do negro é uma felicidade guerreira”
“Zumbi, comandante guerreiro
Ogunhê, ferreiro-mor capitão
Da capitania da minha cabeça
Mandai a alforria pro meu coração”
Os versos dessa canção, de autoria de Wally Salomão e Gilberto Gil, expressam, com rara precisão, o espírito em que se encontra o movimento negro brasileiro diante das ofensas descabidas e desrespeitosas do Presidente da Fundação Cultural Palmares, divulgadas pelo jornal O Estadão, recentemente.
Esse ódio gratuito dedicado àqueles que ao longo dos últimos anos têm exposto suas vidas no combate ao racismo e na luta pela igualdade racial e social no país, é desproporcional. Se há uma característica uníssona do movimento negro no Brasil é o seu espírito pacífico. Nunca defendemos ou fizemos uso da violência enquanto meio de protestar e/ou denunciar o profundo racismo arraigado na sociedade brasileira.
Tanto é verdade que no primeiro artigo da Lei 7.668/88, que criou a Fundação Cultural Palmares, em 22 de agosto de 1988, ano do Centenário da Abolição da Escravatura, está lá que a sua finalidade é “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Nenhum espírito revanchista ou de vingança. Mas a exigência do reconhecimento do nosso contributo para a formação da sociedade brasileira.
A Palmares é uma conquista que contou com a participação ativa de milhares de brasileiros (brancos e negros), que buscavam corresponsabilizar o Estado brasileiro, na superação das mazelas decorrentes da longa escravidão a que foi submetida a população negra do país, por meio de políticas públicas de cultura.
Portanto, não foram, meras palavras jogadas ao vento. Foram compromissos históricos, assumidos pelo Estado brasileiro, com o povo brasileiro, no meio de uma Constituinte, que culminou na Constituição Cidadã, que baliza o Estado de Direito vigente no Brasil e que precisam ser respeitados.
O compromisso do reconhecimento da contribuição dos afrodescendentes, por parte do Estado brasileiro, em 88, é uma das maiores vitórias do movimento negro brasileiro. Portanto, essa singularidade da Fundação Palmares, de ser fruto, não das entranhas burocráticas do aparelho do Estado, mas da mobilização da sociedade em torno dos direitos civis, ou seja, civilizatórios, por si só, já mereceria todo respeito e reverência de qualquer cidadão brasileiro.
No caso específico da luta contra a discriminação, o preconceito e o racismo que impera em nossa sociedade como um câncer, desde que a escravidão por aqui se instalou, a existência de uma instituição como a Palmares, é a garantia de que estamos enfrentando essa doença eliminando suas causas e raízes culturais, sem deixar de combater suas consequências, como aliás, a Revista RAÇA vem fazendo há mais de 20 anos.
Por isso mesmo, qualquer cidadão que venha a ocupar o cargo de presidente desta instituição, tem o dever inalienável de honrar esses compromissos, pois eles estão inscritos no próprio Estatuto da instituição: fomentar, divulgar, fortalecer, valorizar e preservar as manifestações culturais de origem negra brasileira, reconhecendo inclusive, a sua diversidade, particularmente no campo religioso.
Agredir, xingar, depreciar e caluniar aqueles que com sangue, suor e muitas vezes com a própria vida lutam contra as mazelas do escravismo brasileiro, nunca fez parte do ideário e dos objetivos da Palmares. Essas atitudes devem ser repudiadas e combatidas de maneira firme, por todos antirracistas brasileiros.
Neste sentido, não podemos tolerar, muito menos admitir que a Fundação Palmares sirva de palanque ou biombo para teses racistas que vigem nos porões da nossa sociedade: racismo, fascismo, ditadura e intolerância, não são coisas que afetam apenas as vítimas diretas dessas violências. Elas contaminam a todos. Portanto, combatê-las é uma tarefa de todos.
Toca a zabumba que a terra é nossa!