Quem quer ser um covarde vivo?
Estou estudando biografias de lideranças negras. João Cândido, Malcolm X, Dr. Luther King. Cada um destes líderes, à sua maneira, lutou por direitos básicos. Entraram para a história por seus feitos, pela liderança e inquestionável impacto na sociedade que vivemos hoje, seja no direito ao voto ou o simples fato de ser tratado como cidadão.
Invariavelmente, essas figuras públicas, engajadas com os movimentos negros (sim, movimentos, sempre no plural) pagaram um alto preço por suas “transgressões”. Generalizando, suas histórias começam com dor e indignação por um direito negado, segue para uma luta política, um momento de catarse (que podemos chamar popularmente de: tiro, porrada e bomba) e, ao final, das duas uma, ou a pessoa é morta ou é jogada ao ostracismo, deliberadamente excluída da sociedade.
Final feliz não combina com heroísmo, muito menos com heroísmo preto. Nem em Wakanda! Muito menos em terreiro. Mãe Bernadete Pacífico, líder quilombola e religiosa (ialorixá), foi morta há algumas semanas, na Bahia. Ela era uma voz contra madeireiros ilegais. E o fato não é isolado. Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete, também foi assinado há 6 anos. Os criminosos estão soltos.
Mano Brown diria: “E fim! O filme acabou pra você. A bala não é de festim, aqui não tem dublê”. Coincidência ou um problema real? Ao ouvir tantos finais tristes é impossível não pensar se o legado destas pessoas justifica o custo que pagaram em vida ou com suas vidas? Ainda que sejam influentes e conhecidas, muitas vezes com acesso aos microfones, à imprensa e a políticos, a pergunta que não cala é: por que pessoas pretas, mulheres, indígenas, comunidade LGBTQIAP+, entre outros (a lista é longa) seguem expostas e vulneráveis? Como lidar com alguns reacionários com uma arma ou uma caneta na mão que podem agir impunemente? Como é que viver no vale da sombra da morte?
Evoco João Cândido, timoneiro do maior navio de guerra dos anos 1910, líder da Revolta da Chibata. O movimento era contra os castigos corporais na Marinha Brasileira. Pois bem, João Cândido aceitou, consciente, conduzir essa revolução, mas será que tinha consciência de que passaria dois anos preso, ficaria muito doente, e nunca mais poderia fazer o que você mais amava, comandar um navio? Como recompensa, entrou para a história como “Almirante Negro” e ganhou uma bela música: “O mestre-sala dos mares”, interpretada na voz da Elis Regina. As futuras gerações serão eternamente gratas pelo seu legado, apesar de muitos terem tentado apagá-lo dos livros de história. Você toparia o risco? É pegar ou largar?
A resposta não é óbvia. Ela mexe com ego, vaidade e um sentimento de injustiça. Como assim? Vou ser sistematicamente “cancelado” depois de todo trabalho que tive? Quem aceitaria um convite destes? Trazendo essa situação pra minha realidade de preto executivo, recém chegado nas pautas raciais, fica a pergunta. Vale a pena seguir com a vocalização de injustiças, ainda mais sem saber como essa caminhada vai se desenrolar? E se a história se repetir, qual o preço a ser pago?!
Quando criança, minha mãe falava: “melhor um covarde vivo, que um herói morto”. Às vezes, ela trocava o “herói” por “valentão”. Naquela época, era um alerta para não me envolver em brigas. E eu obedeci. Mas agora que eu cresci mãe, preciso dizer que não dá pra ficar quieto. E não é valentia não. É que ficar quieto, ser covarde, não muda nada. Ninguém vai te dar nada porque você se comportou.
Talvez isso explique porque tantas pessoas aceitaram lutar por uma causa que, em vida, não será resolvida. Tem que ter um pouco de fé, ingenuidade e teimosia para se colocar nesse lugar. Um pouco de loucura também. Mas não tem como viver inerte. Imagine dizer a Martin Luther King Jr: faça seu papel de operário e pagador de impostos. Você vai viver mais anos para morrer igual como nasceu: indigente e bem comportado.