Racismo, hipocrisia e cinismo
“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci..”
Ao tomar conhecimento, semana passada, da enorme polêmica criada no país a partir da Ação Afirmativa desenvolvida pela empresa Magazine Luiza, lembrei-me dos versos acima, do poeta e ex-Secretário de Cultura do Estado da Bahia, Jorge Portugal, nos quais descreve, de maneira dura e poética, a saga que os escravizados brasileiros vivem desde a abolição da escravatura, em 1888. Foi um misto de tristeza e indignação perceber que, ainda hoje, parte significativa da sociedade brasileira continua tão racista, cínica e hipócrita, quanto no período da escravidão.
A leitura dos argumentos despejados nas redes sociais pela malta dos conservadores e reacionários de plantão, dá a impressão de que vivemos em outro planeta. Parece até que foram os brancos que foram escravizados durante 386 anos no Brasil e que são eles os discriminados, excluídos e assassinados pela sanha racista brasileira, dia após dia.
O cinismo contido nos argumentos é tamanho que assusta qualquer um. Realmente, o racismo brasileiro é pra ninguém botar defeito. Só com uma dose cavalar de hipocrisia para afirmar que a ação do Magazine Luiza está discriminando os trabalhadores brancos e promovendo o “racismo reverso”.
Mais inusitado e grave ainda, é que foi a partir da declaração de uma Juíza, integrante do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, que deveria defender os interesses dos trabalhadores, de quem partiu os primeiros brados contra a ação da empresa. Ela afirmou o seguinte na sua rede social: “Discriminação na contratação em razão da cor da pele: inadmissível”. “Na minha Constituição, isso ainda é proibido”. Em qual planeta essa juíza vive? De qual constituição ela está falando, ao privatizá-la, como algo de sua propriedade?
Vai ver a Juíza estava se referindo a Constituição de 1824, aquela que dividia os brasileiros entre “ingênuos e libertos”, sendo os ingênuos aqueles que nasciam livres e os libertos os ex escravizados. E que permitia que os escravizados fossem tratados como semoventes (animais e mercadorias) e fossem objetos de posse, compra e venda, da elite branca brasileira.
Será que a Juíza desconhece a Constituição de 1988? Será que ela não sabe que no Brasil, as Ações Afirmativas, além de serem absolutamente legais, foram aprovadas e chanceladas por unanimidade, várias vezes, pelo Supremo Tribunal Federal, particularmente na questão das Cotas para o ensino superior e no direito às terras dos Quilombos?
Na dúvida, transcrevo aqui, um trecho do parecer do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, sobre o significado das ações afirmativas: “a ação afirmativa tem como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar.
Portanto, parabéns a Luiza Trajano, CEO do Magazine Luiza, que tem enfrentado de forma firme e corajosa a sanha racista desencadeada nas redes sociais. Até porque, sua atitude, além de nos dar o alento de que o Brasil tem jeito, nada mais é do que o reconhecimentos de que seus trabalhadores negros e negras, que são a maioria na empresa, são seres humanos e por isto mesmo, podem ter o direito de sonhar e conquistar cargos de lideranças, tanto no Magazine, quanto em qualquer outra empresa.
Toca a zabumba que a terra é nossa!