SAIBA MAIS SOBRE A CULTURA QUILOMBOLA
Veja trechos da entrevista com o quilombola Ronaldo dos Santos e saiba mais sobre a cultira quilombola
TEXTO: Maurício Pestana | FOTOS: Valu Ribeiro | Adaptação web: David Pereira
Quando falamos em quilombola, logo vem a mente um sujeito negro, de uma comunidade distante, fechada e rural; mas ao nos depararmos com Ronaldo dos Santos essa imagem cai por terra. Professor e músico há 18 anos, o jovem chegou longe: presidiu e liderou as Comunidades Tradicionais em nível nacional, conquistando prestígio e respeitabilidade em todo o Brasil, o que o credenciou a se tornar o primeiro Secretário de Cultura quilombola de que se tem notícia. Nesta entrevista exclusiva à Raça Brasil, em sua residência no quilombo do Campinho em Paraty, Ronaldo fala de sua história como liderança quilombola e do novo desafio como secretário na administração pública da cidade.
Qual o percurso percorrido para que o quilombo se tornasse o que é hoje?
A história da comunidade é marcada por três momentos. Um é de antes da rodovia Rio-Santos, quando tinham uma forma de viver: se relacionavam com o meio, com as comunidades vizinhas, que eram outros quilombos da região, e as comunidades caiçaras de todo o litoral. Existia, então, uma relação muito estreita do Quilombo do Campinho com estas comunidades e com a cidade também. As pessoas têm muito aquela ideia de que o quilombo é uma terra isolada, e não é assim. Porém, a rodovia Rio-Santos, construída na década de 70,inaugurada em 1975, transformou a região. Surgiram vários empreendimentos como as Usinas de Angra 1 e 2, os condomínios, as marinas, os resorts. Algumas comunidades quilombolas da região desapareceram, outras diminuíram significativamente ou tiveram seu modo de vida transformado violentamente. Então, vem uma grande luta pela sobrevivência, luta pelo território, pela manutenção do grupo; e essa comunidade (a do Campinho) tem uma luta que eu considero uma das mais bonitas que eu conheço, pois por 30 anos o povo lutou e resistiu bravamente a toda forma de especulação que se possa imaginar.
A titulação encerrou essas etapas?
A rodovia Rio-Santos traz o que eu considero ser o segundo momento,que se encera em 1999 com a titulação. Inicia-se o terceiro momento, quando , com o território assegurado, conseguimos refletir e discutir perspectivas de futuro: em educação, e sustentabilidade…Começamos também a discutir a nossa cultura. A questão do mercado de trabalho foi encarada como algo que é importante para a nossa comunidade: porque o nosso conhecimento é baseado na memória oral, e é passado na relação do pai e filho, avó e neto, mãe e filha, etc… Que é manifestado no dia a dia, nas roças, nas casas de farinha, de artesanato. Ali é passada toda a nossa sabedoria, todo o nosso conhecimento, nossa forma de pensar a vida, de fazer a vida. E quando os nossos pais e mães, os nossos adultos saem para o trabalho com jornadas de dez ou doze horas fora da comunidade, existe uma ruptura desse ciclo. Por isso achamos muito difícil desenvolver um projeto no qual a gente fortaleça a nossa cultura, a nossa identidade, tendo todos os adultos fora da comunidade.
E como resolver esse dilema?
Entendendo que um projeto de cultura depende de um projeto de geração de renda dentro da comunidade. As coisas não são deslocadas. Dependem ainda de um projeto de educação, porque a escola é o único espaço institucional que a criança freqüenta todos os dias obrigatoriamente; então esse espaço tem que estar politizado. Uma política de saúde para a gente deve considerar o conhecimento dos nossos mais velhos. É um projeto bem holístico neste sentido, porque se você desenvolve um lado da comunidade sem considerar os outros, você não avança no desenvolvimento.
Onde o turismo étnico entra nesse processo?
O projeto de turismo étnico surge para suprir essa geração do trabalho e renda dentro da comunidade, e envolve tanto adultos quanto jovens. Nesse projeto, nós recebemos os turistas e muitos deles são grupos de escola, o turismo pedagógico. A gente conta a nossa história, e através de nossos Griôs – que são os mais velhos, os guardiões das nossas memórias – e através desses diálogos, nós fazemos uma vivência circulando pela comunidade. A gente fala sobre nossos núcleos familiares, como se organiza um quintal em um quilombo, as ervas de fundo de casa, os pequenos roçados, as áreas de agro-florestas, que são as produções consorciadas. Incluímos ainda nos roteiros, apresentações culturais: que são as rodas de Jango e um almoço ou um café da roça que é uma mesa com coisas da roça; já para o almoço nós temos como principais pratos a feijoada ou o peixe à moda quilombola, que são servidos em nosso restaurante comunitário – um espaço coletivo que funciona diariamente como restaurante comum e onde atendemos os grupos de visitação, mas também é utilizado para as festas da comunidade e vários eventos. Esse espaço é muito importante, pois atende a muitos membros da comunidade como guias, griôs, cozinheiros, garçons, o pessoal da roça fornece os alimentos para o restaurante etc.
Como foi sua virada, de Quilombola aqui do Campinho, à secretaria de cultura de uma das cidades mais procuradas do eixo Rio-São Paulo?
Quando eu fui convidado pelo Prefeito Casé (Carlos José Gama Miranda) para ser Secretário de Cultura de Paraty – que, aliás, é uma secretaria muito nova: eu sou o segundo secretário de cultura da cidade – fiquei muito feliz, sobretudo por poder trazer outra lógica de trabalho à gestão pública, em termos de compreender que Paraty vai muito além do centro histórico.
Paraty hoje também é mundialmente conhecida por conta da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Qual a relação dessa feira com a cidade e com todo esse contexto que você acaba de narrar?
A FLIP é um evento grande, importante. Se você for perguntar pelas ruas de Paraty sobre o que as pessoas acham da FLIP, elas vão te falar que acham importantíssima, sobretudo do ponto de vista econômico – porque a cidade vive de turismo e a FLIP, talvez, seja o maior evento que temos em termos de mobilização, de projeção,de turismo receptivo. Então, por tudo isso ela é muito importante.Ao longo dos dez anos que acontece a FLIP, houve também críticas pela pouca, ou ausência de interação com o povo e a cultura da cidade. Então nos últimos anos percebemos algumas ações tímidas da FLIP no sentido de incluir a comunidade local, mostrando a quem chega em Paraty a existência de uma cultura local; mas como eu disse, as ações neste sentido ainda são muito tímidas. A FLIP, a meu ver, precisa ser radicalizada no sentido de trazer a cidade para dentro da feira, e não surgir dentro da cidade como um objeto estranho, que traz apenas o benefício do movimento econômico. De todo modo, a FLIP é, de fato, um evento importante.
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