SENHOR DAS PALAVRAS: Relembre a entrevista com Lázaro Ramos

Texto: Flávia Cirino

TV aberta, canais fechados, teatro, cinema, redes sociais, e, cada vez mais, literatura. Se houver outras opções que lhe propiciem a integração, Lázaro Ramos estará envolvido. Não tenham dúvidas. Consagrado nacionalmente como ator, o artista conquista o universo dos livros ao lançar sua terceira obra infantil, “Cadernos sem rimas da Maria”, dedicado à sua filha, Maria Antônia.

Em 2018, Lázaro Ramos estava no ar na quarta promissora temporada da série “Mister Brau”, na TV Globo, o artista celebra o reencontro com as raízes africanas no capítulo que encerra a série, todo gravado em Angola. Ainda, à frente do programa “Espelho”, no Canal Brasil, no qual apresenta e entrevista pessoas que se destacam na sociedade, esse baiano de sorriso sincero e acolhedor conquista cada vez mais o público. Atuante nas redes sociais, dia a dia mais comprometido com o que considera como missão, Lázaro não surpreende. Só enfatiza e faz ter certeza de que vale a pena ser e fazer o bem.

Na semana passada, o ator declarou em suas redes sociais que não irá renovar o contrato com a Globo, depois de 18 anos. Assim como em 2018, o ator, escritor e diretor parte para novos rumos e passa a integrar a equipe da Amazon Prime Video dirigindo uma nova produção para o serviço de streaming.

Num bate-papo descontraído com a revista RAÇA, há três anos, ele falou sobre vida pessoal, carreira, política, negritude e sobre seus livros. Confira a trajetória do ator e relembre conosco a carreira do artista que foi capa da edição 200 de RAÇA.

RAÇA – Desde o início de sua carreira, no Bando de Teatro do Olodum, você sempre procurou enfatizar as situações vivenciadas pela população negra, seja através do humor ou de forma séria. Comemoramos 130 anos da Abolição da Escravatura. Evoluímos?

LR – Ainda estamos na construção da nossa Abolição. Teve a liberdade de não estarmos mais escravizados, mas a construção de direitos, de espaços de representatividade, isso ainda está em processo. Fico olhando com muita atenção, que ao mesmo tempo que temos dados que nos entristecem como assassinato de jovens negros e tantas outras expressões de barbáries, temos outras coisas que gosto de botar o olho e foco como pontos
positivos como, por exemplo, essa geração que está entrando na Comunicação através dos mecanismos que existem, seja de redes sociais, canais da internet, isso me brilha os olhos. Uma geração que entra nas universidades e está criando novas teses de narrativas, isso me brilha os olhos. Uma geração que está se firmando pela estética – que eu acho superimportante e a RAÇA faz parte disso porque todos os meses você vê ali as sessões dizendo assim: olha essa galera que está se afirmando aqui através do estudo, do seu trabalho e também através da estética. Isso é uma coisa que vejo com muita atenção e que comemoro. Fico atento para que não seja só um processo de moda porque a gente já viu isso várias vezes. Às vezes tem uma fase em que as coisas estão mais animadoras e daqui a pouco isso some. A gente tem que cuidar para que isso seja um
processo permanente.

RAÇA – Você está se dedicando com afinco à literatura, sobretudo a infantil. O que caracteriza “Cadernos Sem Rimas Da Maria”?

LR: É o amadurecimento de um processo que comecei lá atrás, quando escrevi minha primeira peça de teatro, que era muito da intuição e para falar da minha família. Depois veio o livro do João (João Vicente, filho do ator, para quem ele escreveu o livro “Cadernos Com Rimas de João”), que era pra explicar coisas do mundo através das rimas para o meu filho. Veio o “Na Minha Pele” num momento muito importante que considero um trabalho de 10 anos debruçado nesse assunto, sem saber como falar, sem saber se teria escuta. O da Maria vem da evolução do aprendizado com minha filha, de ser pai de menina, que trouxe aprendizados inevitáveis. Maria é uma menina que grita por liberdade em tudo o que ela faz, é muito bonito ver isso, aprender a respeitar isso, tanto que fiz uma piada no título do livro, “Cadernos Sem Rimas da Maria”, que vem de uma liberdade de ter o direito de ser quem ela quer ser. Aprendi como pai de menina e aprendi coisas do universo feminino, como por exemplo, a relação com o cabelo.

Tem um verbete que fala da relação que se deve ter aí, fazer carinho no cabelo crespo. Isso vem de uma relação com ela, uma relação de afeto construindo ao mesmo tempo essa evolução. O jeito de lançar o livro também vem da evolução de entender que hoje existem parceiros que estão pensando a infância no entretenimento, colocando a diversidade como valor que faz com que a maneira de lançar o livro seja diferente também, seja convidando a Joice do Pretas Pretinhas para fazer as bonecas do livro e fornecer para as pessoas esse material tão lúdico e tão importante para as crianças. Não preciso aqui dar aula sobre a representatividade dos brinquedos, seja pelas músicas que a gente fez – estou fazendo junto com o Jarbas Bittencourt 10 músicas baseadas nos meus livros infantis e a maioria delas são do livro da Maria. O Jarbas trabalha com a direção musical do Bando do Olodum já há 19 anos e trouxe parceiros. Estou cantando com a Lelezihha, Jessica Ellen, Heloisa Jorge. São derivados desse livro. Todas as páginas são ilustrativas, mas ao mesmo tempo estou querendo essa galera tão capacitada que está aí contaminando, criando uma rede. Não estou inventando nada, estou tentando agrupar. Acho que essa é a evolução e o amadurecimento. As rimas do João era apenas um livro e o sem rimas da Maria é uma ideia que se propaga na mão de gente que já está fazendo isso, trazendo oportunidade e entretenimento para as crianças.

RAÇA – Como era a relação do Lázaro criança com a leitura?

LR – Comecei a ler na adolescência. Tive uma grande dificuldade com a leitura, porque a leitura chegou pra mim
através da escola e de maneira que parecia que era obrigação. “Você tem que ler Dom Casmurro!”. Não era assim: “olha, você tem que ter prazer em ler Dom Casmurro”. Então eu não gostava de ler, vim apreender a ler na adolescência quando comecei a fazer teatro, já no Bando de Teatro do Olodum e lia livros específicos que me interessavam, que veio muito junto a uma literatura ligada a teatro, à cultura negra e aí, sim, eu disse: ah, em encontrei! Mas é uma pena porque acho que perdi muito tempo da minha vida, tanto é que hoje em dia eu fico correndo atrás de muita coisa que perdi. Leio muito livro antigo, ao mesmo tempo fico atrás de novidades e fico lendo vários ao mesmo tempo, é uma falta que acho que tenho na minha vida, na minha formação.

RAÇA – Como as crianças têm recebido seus livros? Há algum mecanismo especial que os torne atraentes ao bloco infantil?

LR – Foi muito através da escuta dos meus filhos o primeiro livro que escrevi, na verdade acho que escrevi com o sentimento de preencher o espaço para a criança que eu fui, para preencher as lacunas da minha época, A Menina Edith e a Velha Sentada. O do João foi através das relações que tive com ele mesmo, das diversas vezes que ele me confrontou perguntando o que era a morte, o que era a saudade, o que é autoestima, aí fui tendo que criar um repertório para lidar com ele. O da Maria eu tentava inventar palavras que não existiam para sensações que a gente vivenciava. Foi mais difícil. Uma coisa muito interessante que a editora Palas fez, com os dois livros, foi mandar para uma escola pública, sem dizer quem era o autor, para as crianças lerem. E depois eu recebia um relatório das crianças e retrabalhei o livro. Então esses foram feitos muito em cima da escuta, daquilo que eles queriam ver e me policiando sempre, porque tenho uma tendência a ser muito didático, sempre quero passar uma mensagem, uma lição, e o meu amadurecimento, a minha tentativa é de dar o direito de a criança também se entreter apenas e às vezes passar uma lição ali que permaneça e não como um professor que está tentando
dar uma aula pra ela. Não é esse o papel que acho que cumpro melhor. Acho que sou melhor quanto estou entretendo junto.

RAÇA – Nessa linha de cumprir seu papel, há uma tendência a ingressar na política partidária?

LR – Não tenho interesse – nesse momento da minha vida – em política partidária. De repente no futuro, não sei, mas agora tem uma coisa que acontece que acho muito bonita. Eu, durante muito tempo, fui uma pessoa com muitas ideias na cabeça, com muitos projetos e ninguém me escutava. Agora eu tenho uma escuta das pessoas e encontrei parceiros para realizar; isso é preciosíssimo pra eu abrir mão e tenho percebido que está sendo útil para algumas pessoas. O livro “Na Minha Pele” demonstra como foi importante pra mim e isso eu não
consigo encontrar na política.

RAÇA – Pensa em escrever uma biografia?

LR – Está cedo, espero viver muita coisa ainda, quero construir muita coisa, e inclusive, eu não sei se gostaria de
ter uma biografia definitiva. Acho que vou escrever muitos livros, se possível com esse desejo de falar do meu tempo, e acho que estou em construção. Acho que depois vou mudar de ideia, quero ter o direito de estar em movimento, criando novas narrativas sempre, não quero congelar em lugar e ideia nenhuma. Minha preocupação é falar para o meu tempo. Talvez o “Na Minha Pele” vire um documento que daqui a 20 anos alguém leia e diga: “ó como era lá em 2017”. Mas acho que serão biografias diretas da minha vida e serão diretas como é o “Caderno Sem Rimas da Maria”. Acho que tem algo de biográfico aí, na relação desse pai negro com essa filha que tem o cabelo crespo e ele diz: “seu cabelo é crespo, é lindo”, e tem várias possibilidades e eu acho que é um lugar de depositar meu afeto. Na minha relação do meu toque de pai no seu cabelo de filha. Isso também é biográfico.

RAÇA – Como você passa as noções de racismo aos seus filhos?

LR – A gente começa a criar os filhos nas nossas dores, respondendo ao racismo. É uma coisa que fico tentando aprender todos os dias. Tem aquela arma básica que é a autoestima, pra criança saber se defender dos males do mundo e os males do mundo não se resumem ao racismo, tem a violência, os desafios pra se aprender. A autoestima costura todos os desafios que uma criança vai ter mais o outro; procuro sempre primeiro entender o desejo dos meus filhos, saber o que eles querem, não impedir que eles desejem, porque muitas vezes os pais podem matar muito o desejo do filho se você ficar interferindo nesse processo de construção dele, e é uma agressão diária. Eu sinceramente acho que não tem fórmula, o que de melhor posso oferecer é a minha escuta e a minha atenção pra eles todos os dias, não é uma coisa que se encerra.

RAÇA – Como lida com o racismo cultural?

LR – O processo da nossa construção identitária tem um perigo, mas ao mesmo tempo pode ser uma potência. Quando a gente fala das manifestações que tradicionalmente são construídas no negro, tem um valor aí de afirmação, de identificação, de demarcação de território que é muito importante. Então é um jogo de equilíbrio
porque, por outro lado, corre um risco muito grande quando a gente fala assim: “os negros” e aí eu coloco todo mundo numa mesma panela. Esse é um desafio que a gente tem que entender que sim, enquanto negros, temos dores e traços identitários, mas ao mesmo tempo a gente tem o direito à individualidade; esse é um processo de construção que a gente vai respondendo dia após dia porque a nossa luta é grande e a gente tem que ter sabedoria e generosidade, paciência pra esse processo de construção, que não é fácil. Por isso, quando a gente se junta pra falar desse processo de construção a gente fica mais forte.

RAÇA – Você se rende às imposições identitárias?

LR – Baianamente, de mansinho, só faço o que eu bem quero. Sou muito educado, mas não faço o que não quero. Seja um personagem, seja dizer que gosto de alguma coisa pra provar alguma coisa pra alguém. Eu fui construído com muita liberdade dentro da minha casa, sou muito intuitivo. Minha família é muito
popular, de origem popular, a maioria dos meus parentes não teve acesso às universidades, mas tinham uma coisa que, de forma intuitiva, deram pra mim, que foi a autoestima e muita noção de que eu tenho direitos. E tudo de maneira muito doce. E não sei como eles conseguiram construir isso na minha cabeça e na
formação de todos os meus parentes; todos os meus primos e irmãs são assim. Então, essa cobrança, quando aparece, eu baianamente faço o que bem quero.

RAÇA – Seus livros estão sendo usados em escolas públicas na Bahia. É um caminho para a melhoria do ensinamento da História Afro-Brasileira nas escolas…

LR – Tenho visto que é importante, foi trabalhado durante um mês e meio nas escolas e depois fui conversar em seis escolas. O que as crianças me perguntavam, eu via que eles já estavam um passo à frente de várias discussões que eu demorei 20 anos pra conquistar. Foi lindo ver meninos de 13, 14 anos falando de assuntos que
nem estão no meu livro, mas que foram provocados por essa literatura. E aí digo mais: crianças brancas e negras. Teve um menino branco de 13 anos de idade que falou assim: “tio Lázaro, tem um assunto que não está no seu livro, mas por causa do seu livro a gente acabou estudando que é a questão do colorismo. Você vê que os dados estatísticos mostram que os negros de pele mais escura, os dados são piores. O que que eu faço pra ajudar isso? E eu não soube o que responder pro menino. Eu disse: “olha só, somente o fato de você estar me perguntando isso, pra mim já é uma maneira de contribuir nessa discussão.


RAÇA – Você está atuando em todos os meios de comunicação. O que há de novo?

LR – TV, nunca sabemos se haverá mais uma temporada do “Mister Brau”. O programa foi pensado para ser exibido somente uma vez. Fazemos sempre o último episódio pensando que será o definitivo. Esse da quarta temporada teve até um investimento maior, foi feito como se fosse um filme. Parece ser uma história definitiva. É muito bonito, tem a força identitária que temos com Angola, com a África, nunca teve antes na história da televisão brasileira uma história como essa. O “Lazinho Com Você”, estamos trabalhando para colocar em horário noturno, que era o pretendido inicial. Vamos reformular e teremos a possibilidade de falar de assuntos menos lúdicos; a primeira temporada foi formatada para assuntos de domingo à tarde, para falar com toda a família assuntos que agregassem a todos. O “Espelho” não acaba nunca mais, está aí. Novela eu tenho até convite, mas é pro final de 2019. Continuo com as peças O Jornal, O Topo da Montanha e a Velha Sentada. Eu tenho uma produtora e às vezes as pessoas nem sabem que a gente está fazendo várias coisas. Eu tenho tentado, com a Lata Filmes, fazer uma galera chegar. Esse é o meu trabalho. A gente está tentando criar braços e nos comunicarmos de todas as maneiras.

RAÇA – Em meio a tantas funções, como é a relação com sua família? Como você e Taís conciliam tudo isso?

LR – Taís é uma pessoa exemplar. São 13 anos de casamento e eu já tinha muita admiração por ela como atriz. A partir do momento em que a gente casou, incluindo namoro, mãe, ela é um exemplo pra mim em todos os lugares. Seja na sede de aprendizado que ela sempre teve, seja na maneira agregadora que ela tem de exercer de tudo. Ela num set de trabalho ela está focada nas coisas dela, mas está preocupada em agregar as pessoas, em deixar um ambiente bom de trabalho, em potencializar quem está perto, seja dentro de casa, preocupadíssima com a gestão da casa, com a maneira de criar os nossos filhos. Taís pra mim é um exemplo e é muito bacana porque a gente o tempo todo vai crescendo juntos, um vai se alimentando do outro. Isso é uma coisa muito bonita e isso faz com que eu sinta muito conforto em ter essa família que eu tenho, é um grande refúgio. Ter a esposa que eu tenho, os filhos que eu tenho, são duas pessoas muito gente boa. Maria é uma
menina muito legal, João é um carinha muito legal, sabe, e é muito bom ter esse lugar na vida.

RAÇA – Como conseguem manter essa harmonia?

LR – O que junta a gente é o humor. A gente ri muito junto. É o que une o casal, porque conflito tem todos os dias, divergência de opiniões tem todo dia, mas tem um lugar onde a gente se encontra que é rir juntos; às vezes as pessoas não falam disso, falam mais do desafio, mas eu gosto de falar dos momentos de encontro. A questão da identidade é muito forte, a gente sabe o que um e o outro está falando, das nossas dores, as nossas faltas, mas tem o lugar de olhar pro mundo e encontrar motivo pra rir juntos, é uma coisa que já traz romantismo, já traz amor, afeto e tem sido assim, graças a Deus, há 13 anos.

RAÇA – Parafraseando seus livros, o que rima e o que não rima?

LR – O que rima é criar pontes, que é uma coisa que tenho feito muito ultimamente. Rima com tudo hoje em dia. E, se não rima a gente tem que buscar rimar porque estamos num processo muito ruim de desunião, de desagregar. O conceito de criar pontes, de juntar, de encontrar o que nos une, encontrar o que nos agrega é o que tem que rimar. Essa tem que ser a nossa luta, estamos esfacelados, a gente está sendo contaminado pela polarização, pela falta de compreensão, de que se a gente não estiver junto em prol de uma causa, aqueles que comandam o país há muito tempo continuarão comandando. E o que não rima é essa nossa falta de opção de quem nos represente no Congresso, não rima e me angustia muito. A gente tá perdido, de que lugar e que direção seguir. Essa, pra mim, é a nota mais dissonante e por isso tenho ficado atento, para que eu possa ver as pessoas que vão nos representar naquele lugar tão importante. Acho, por exemplo, que a juventude da minha geração, a gente falou muito que política é lugar de ladrão, não quero estar lá. Acho que a gente deveria ter pensado o oposto. Justamente por ser um lugar importante, a gente precisa querer estar lá, a gente precisa querer ocupar esse lugar. Agora, tardiamente, estamos tentando correr atrás disso. Já já a gente chega, criando pontes.

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