Três mulheres negras no alto escalão do poder público

Por: Mauricio Pestana e Claudia Alexandre | fotos Rafael Cusato

Enquanto avança no Brasil o movimento que quer tirar a mulher negra da pior posição dos indicadores sociais, há de se reconhecer a longa história de enfrentamento do movimento de mulheres negras (que por aqui são maioria, em relação à população de mulheres brancas!) que cotidianamente pautam as maisdiversas formas de discriminação. a realidade ainda é dura: elas recebemos piores salários, são as que mais chefiam famílias e resistem ao desprezo estrutural do sistema racista.

A boa notícia é que, apesar de controverso, pelo uso do termo, o significado de empoderamento, num pensamento coletivo e não individual, tem alçado mulheres negras a postos de poder em instituições públicas e privadas. É o caso destas três brasileiras que alcançaram altos cargos governamentais. 

Olívia Santana, Helena dos Santos Reis e Macaé Maria Evaristo dos Santos são negras empoderadas e de grande expressão política na Bahia, São Paulo e Minas Gerais, respectivamente. Ativista, Olívia Santana (PCdoB), 51 anos, tem um nome bem conhecido no movimento negro e das mulheres. Ela já ocupou uma cadeira na Câmara Municipal de Salvador, onde foi vereadora por 10 anos. Formada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia, atualmente é uma espécie de “super” secretária, comandando a Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e de Esportes do Estado da Bahia. Apesar da reconhecida competência para atuar no primeiro escalão do governo, ela não hesita em dizer que seu maior desafio é enfrentar o imaginário de uma sociedade racista, que ainda acredita que ela deveria estar fora do lugar que conquistou: “A decisão do meu partido, de me indicar, criou um conflito. Houve uma crise interna muito grande que tivemos que equacionar, porque alguns achavam que era muito me colocar neste lugar. Tinham outros nomes que pleiteavam esta secretaria, todos brancos e oriundos de outros segmentos, de outros movimentos que não o Movimento Negro e o Movimento das Mulheres, que é  a minha característica”, disse ela.

Paulista de São José do Rio Preto, a coronel Helena dos Santos Reis, 48 anos, é a quarta mulher a ocupar o posto mais alto da Polícia Militar do Estado de São Paulo e a atual secretária Chefe da Casa Militar. É também a segunda mulher a exercer esta posição no Palácio do Governo, respondendo ainda pela Coordenadoria Estadual da Defesa Civil. Graduada em Direito e Turismo, fez pós-graduação em Planejamento (UFF-RJ) e mestrado e doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco, em São Paulo. Para ela, filha de militar, o empoderamento não pode existir se não houver o comprometimento com uma causa, entre elas encarar a questão de ser uma mulher negra e policial, tendo pela frente, por exemplo, o problema da violência contra o jovem negro, que tem sido uma preocupação recorrente: “A segurança pública, na verdade, é reflexo de todas as outras áreas que vão mal.

Quando aquele jovem se defronta com a polícia, foi a última etapa de uma vida de violação de direitos. Quando aquela jovem engravida aos 16 anos, na comunidade, já houve uma violação de direitos humanos, porque ela deveria ter tido uma assistência, uma formação que não a levasse a esta situação de vulnerabilidade social. E aí ela tem uma gravidez sem pré-natal e sem nenhum direcionamento, sem coisa nenhuma. E aquela criança nasce e brinca ali no esgoto. Já está previsto na Constituição que a mãe tem direito à assistência, à maternidade, ao saneamento básico, à educação, ou seja, os direitos humanos estão sendo violados e essa violação não acontece de maneira pontual, ela vem se construindo e, um dia, sendo culpado ou não, aquele jovem acaba se defrontando com uma situação de violência e morre”, analisa.

Pronta para disputar um cargo de deputada estadual, Macaé Evaristo comandou a Secretária de Educação de Minas Gerais e se tornou uma das principais lideranças de esquerda na área de educação e de grande expressão junto aos movimentos sociais.

Graduada em Serviço Social (PUC-MG) e mestra em Educação, pela Universidade Federal de Minas Gerais, Macaé nasceu em uma família na qual o estudo tinha tanta importância, que resultou em seu caminho para a militância. “Os estudos sempre foram uma prioridade na nossa casa. Mamãe, dona Antônia, sempre foi muito exigente e falava pra gente: ‘come livro’. Brinquei muito na escola, na rua com a vizinhança e também vivi episódios cruéis, como de discriminação e racismo. Aprendi muito cedo o poder do conhecimento e tive uma trajetória escolar de sucesso. Fui trabalhar em uma escola da Zona Norte, região de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Nessa escola, vivi episódios de racismo com estudantes me chamando de ‘Macaé’ e outros nomes pejorativos. Minha mãe havia me ensinado desde muito cedo a lidar com o racismo na escola, a me defender sempre. Mas como lidar com o racismo numa relação adulto/crianças? Como lidar com o racismo na infância? O que fazer com crianças, em sua maioria vivendo abaixo da linha da pobreza e com raiva da sua própria pele? Essa experiência me levou a buscar apoio em movimentos fora da escola”, contou.

Em entrevista exclusiva à revista RAÇA, as três secretárias de Estado (Macaé deixou no dia 28 de janeiro a Secretaria de Educação de Minas Gerais, para disputar vaga de deputada estadual) falam da trajetória ao poder e das principais questões que envolvem suas pastas, além de assuntos como política, racismo, juventude negra, feminismo, relações raciais e, lógico, empoderamento da mulher negra no Brasil.

RAÇAA senhora é um exemplo vitorioso de mulher negra em espaço de poder. Já exerceu o cargo de vereadora, Secretária de Educação de Salvador e o de Secretária de Trabalho, Emprego, Renda e de Esportes do Estado da Bahia, uma secretaria extremamente estratégica e importante. Por que ainda estes cargos são tão pouco exercidos por negros?

OLIVIA SANTANA – Na verdade, é uma desigualdade estrutural, isso é histórico. Nós somos os de baixo. Este país se fez sob os negros, portanto, furar, quer dizer, mexer nesta balança para estabelecer um equilíbrio é também uma luta histórica. Somos exceções. No governo da Bahia está acontecendo algo inédito e acredito que no Brasil: Eu sou a primeira pessoa negra a ocupar o cargo de Secretária do Trabalho de um estado com as características que a Bahia tem. Em cinquenta anos de criada esta secretaria, é a primeira vez que a galeria dos secretários vai ter a foto de uma mulher negra lá. Houve um avanço importante, mesmo que estejamos em uma situação, ainda, muito desigual, são  26 secretários e somos cinco secretários negros no primeiro escalão do governo da Bahia.

RAÇA – Quais as dificuldades e embates para uma negra, mulher e comunista, num cargo como este?

OLIVIA SANTANA – Além de ser mulher e negra, eu sou comunista! A Bahia vem na contramão, nós temos um governo de centro-esquerda. O governador é do PT, foi meu colega na câmara de vereadores. Nós temos um laço de respeito, que foi construído. Ele sempre teve muito apreço ao meu trabalho, conhece a minha trajetória e isso facilitou muito para que eu chegasse até aqui para fazer e me estabelecer neste trabalho. Os cargos de confiança são indicados pelos partidos e muitas vezes a gente não faz este debate na devida proporção em que ele precisa ser feito. É de fato uma responsabilidade grande ocupar um espaço como este. O desafio que eu enfrento é o de parecer estar fora do lugar, no imaginário de algumas pessoas. Conquistei uma respeitabilidade que considero importante. O movimento social vibrou com a minha chegada a esta secretaria. Eu tenho uma boa relação com os colegas secretários que me respeitam, mas por outro lado, a decisão do meu partido de me indicar criou um conflito. Houve uma crise interna muito grande. Tinham outros nomes que pleiteavam esta secretaria, estar na comissão. Todos brancos e oriundos de outros segmentos, de outros movimentos que não o Movimento Negro e o Movimento das Mulheres, que é a minha característica.

RAÇA – Como têm sido as estratégias do seu trabalho neste cargo de tanta responsabilidade e qual é a dimensão?

OLÍVIA SANTANA – Em um ano eu troquei o pneu com o carro andando, ou seja, saí da Secretaria da Mulher, que é uma secretaria 15 vezes menor. São 330 milhões, que é o orçamento de hoje, sendo que a Secretaria da Mulher tinha um orçamento que variava entre nove e 14 milhões. É uma mudança exponencial, na verdade, 20 vezes mais, melhor dizendo, é o orçamento da Secretaria do Trabalho, com outra dimensão porque é trabalho, emprego formal, política de geração de renda. Eu comando a pasta da Economia Solidária e políticas de geração de renda que não são do emprego formal, estão alocadas na Superintendência de Economia Solidária. Eu acredito, eu confio em mim. Eu acredito que eu posso e que eu tenho capacidade. Eu não sou nem melhor, nem pior do que ninguém. Eu sei o tamanho da minha responsabilidade, não apenas de conduzir bem a pasta, mas entendendo quem eu sou e que lugar que eu estou ocupando.

RAÇA – A impressão é que nestes espaços o racismo está velado de uma forma diferenciada, no dia a dia das relações. É verdade?

OLÍVIA SANTANA – Em 2013, quando fui nomeada chefe de gabinete desta secretaria. Encontramos uma pichação racista no banheiro feminino e nunca houve investigação, ninguém nunca descobriu quem foi que fez. Apagava e aí aparecia outra, entendeu? Não é fácil! Hoje, aos 51 anos, tenho muita nitidez de quais brigas valem a pena comprar. O racismo vai sempre me acompanhar e nós temos de ter esta dimensão. Eu vou morrer e o racismo não vai acabar. Vai continuar aí. Nós temos de lutar para que ele seja superado e que mais negros e negras sejam empoderados. No curso desta luta, cada posição que você ocupar, esteja preparada porque você vai se deparar com os constrangimentos racistas. A questão é: quais lutas você vai comprar? Que briga vale a pena comprar? Mas eu tenho de saber me posicionar no momento certo. Eu sei o que eu suportei. Só eu sei o que eu engoli para sentar na cadeira em que eu estou sentada hoje, porque eu entendo que era mais importante eu assumir o cargo e deixar uma marca positiva, conquistar e convencer pessoas. Há sempre uma supervalorização do gestor branco, mesmo que ele não seja capaz, que não tenha competência para estar naquele cargo. Ele já tem uma vantagem porque as pessoas acham que aquela imagem é correspondente à cadeira. Se na trajetória você cumprir 80 e deslizar em 20% das suas tarefas, tudo “cai por água abaixo”.

RAÇA – Atualmente a juventude, principalmente de meninas, está entrando e saindo da Universidade com uma noção de empoderamento que não é este empoderamento real. Como foi o seu empoderamento?

OLIVIA SANTANA – Quando eu entrei na Câmara dos Vereadores e assumi meu primeiro  mandato, o segundo e o terceiro e por dez anos eu fui vereadora de Salvador, fui uma “zebra”, eu me elegi na “franja”, eu me elegi quando muitos achavam que eu não conseguiria. Fui aprendendo como conviver. É a luta pelo empoderamento e a luta pela permanência numa estrutura que não foi feita para você. Se eu chegasse lá a “ferro e fogo”, assumindo todas as brigas, abrindo flanco em tudo quanto é lado, talvez eu não estivesse mais aqui, mas eu fui procurar uma forma de convivência por meio do diálogo, da negociação, mantendo meus cabelos, minhas tranças, sem me descaracterizar e nem perder a minha conexão com o movimento social. Sou mulher e negra assumida. Estas características constroem o meu discurso político. Agora eu sei que aquela estrutura é hegemonizada por um poder que é majoritariamente masculino e branco. Como conviver nesta quadra? O recado que eu deixo para a juventude é que estou super feliz com esse movimento dessas mulheres jovens, negras que estão chegando em outra condição. Gerações anteriores abriram este caminho, pagando um preço e hoje tem uma juventude que chega de cabeça erguida, enfrentando e fazendo uma disputa pelo poder.

RAÇA – Como é a aceitação do negro que chega ao poder em relação aos seus próprios pares, no sentido da representatividade? Como construir o tal poder para o povo preto?

OLÍVIA SANTANA – É preciso que a gente conquiste mandato eletivo porque, inclusive na hora de definir a partilha dos governos, a “fita métrica” é: “quantos votos você teve? Com quantos votos você senta para negociar? Quantos vereadores? Quantos deputados? Quantos parlamentares você elegeu?” A gente não pode fazer a “grita” (tem que botar os negros sim), mas, e na eleição, os negros votarão em quem? Este é o tal do debate do voto racial. Eu não acho que isso se resolva criando o partido negro, mas acho que nós temos de enfrentar a discussão, a conscientização, valorizar os poucos negros que estão no espaço de poder que é outro problema. A gente vive uma certa esquizofrenia e eu sinto isso, porque a gente luta pelo empoderamento, para ter a secretaria, para ter um parlamentar e, às vezes, ao sermos convidados para um evento social organizado pelo movimento negro, não há um destaque pelas nossas realizações, não há o devido empenho em valorizar a tragetória daqueles que conquistaram espaços de poder. Ao contrário, os brancos estendem tapetes vermelhos para os dele. Isso é uma esquizofrenia, desculpe! E nesses momentos, nos questionamos: “o que é que eu sou?… o que é que eu sou?…”.

RAÇA – E nem todo negro é nosso amigo, como disse Martin Luther King.

OLIVIA SANTANA – Exatamente! Mas, para que eu consiga produzir, é preciso criar relações interraciais para que a gente consiga chegar onde precisamos chegar. 

RAÇA – Este é um ano eleitoral. Como é que a senhora vê este momento conturbado da política nacional ?

OLÍVIA SANTANA – Nós perdemos espaços que eram importantíssimos, não só na esfera federal. Aqui na Bahia ainda permanece, mas em São Paulo, por exemplo, não existe mais a Secretaria da Igualdade Racial e a gente está recebendo todas as formas de ataques e está vendo reduzir muito o nosso espaço em todos os avanços que a gente teve nos últimos anos. Também acho que nós sofremos um golpe duro. É um golpe no Brasil! Este é um ano decisivo, em que nós precisamos ampliar a nossa presença nos espaços de poder. Precisamos ter parlamentares alinhados a esta plataforma política, se a gente quer de fato retomar uma agenda democrática para o Brasil.

RAÇA – É notória a presença de negros no PCdoB, o seu partido político. Em São Paulo, tem o Orlando Silva que é deputado federal, Jarini na Secretaria da Igualdade Racial e num ano decisivo como esse, a senhora num cargo tão importante, é candidata?

OLIVIA SANTANA – Há sim a possibilidade de eu ser candidata a deputada estadual. Por incrível que pareça, a Bahia, mesmo sendo esta África brasileira, a primeira vez que a gente elegeu uma mulher negra foi em 2014, quando foi eleita pelo DEM, a deputada Aronildes Vasconcelos.

Alimentou o seu sonho de menina negra?

HELENA – Sim, meu pai se aposentou eu tinha uns sete anos. Mas, na primeira infância, a imagem dele uniformizado, às vezes a viatura em casa, acabou formando esse vínculo. Depois, já adolescente, meu irmão também ingressou na instituição. Eu sempre achei muito bonito, aquela coisa da criança mesmo. Sabia que boa parte das crianças querem ser policiais e bombeiros? É uma profissão que desperta o imaginário da criança e do jovem.

RAÇA – A senhora pertenceu à primeira turma de mulheres formadas na Academia de Polícia Militar do Barro Branco. Havia outras mulheres negras na sua turma?

HELENA – Na minha turma eu fui a única. O meu curso foi de quatro anos. Três anos e oito meses após, na terceira turma que ingressou, tivemos mais uma, a Vitória. Não é a coronel Vitória (Brasília de Souza Lima), é outra Vitória. A coronel Vitória Brasília foi a minha preceptora, quando eu ingressei ela já era capitã Vitória. Foi até chamada para a academia do Barro Branco para ser a nossa preceptora. Era a primeira turma de mulheres e ela esteve conosco nesse primeiro ano e depois foi promovida. Ela foi uma das minhas inspirações.

RAÇA – A senhora pertence a uma corporação muito importante, a segurança pública. Mas é também uma corporação que recebe com muita frequência, críticas principalmente da população negra. Como lida com esta questão?

HELENA – A Polícia Militar foi um divisor de águas na minha vida. A minha origem é bem simples. Meus pais vieram da Bahia, a gente morava num bairro bem carente, rua de terra.

Meu pai era policial, minha mãe dona de casa e fomos criados sem esta consciência de direito e até de preconceito. Às vezes agente se acostuma a ser discriminado e você não entende direito que vive em uma situação de discriminação. Quando eu entrei na academia do Barro Branco, em janeiro de 1989, aos 18 anos, a Constituição Federal tinha acabado de ser promulgada. Essa questão dos direitos da mulher, da igualdade, direitos e deveres de mulheres e homens, as questões de gênero, o artigo 5°, estava muito em alta dentro da instituição. Foi a partir daí que eu fui me sentir um sujeito de direitos. Comecei a entender que muitas situações que eu já tinha passado na minha adolescência eram situações discriminatórias e isso para mim foi muito importante para ser a pessoa que eu sou hoje.

Aprendi sobre direitos humanos na Polícia Militar, sobre ter direitos e tudo o mais… A Polícia Militar é a maior defensora dos direitos humanos, em que pese toda a crítica que você mencionou de serem atribuídas a nós algumas situações de desrespeito. Mas, com o perfil que a instituição tem de ser/estar presente em todos os municípios do Brasil e ser a primeira instituição a quem as pessoas recorrem em qualquer emergência, ela é a maior defensora/promotora de direitos humanos.

RAÇA – Como a questão da diversidade é tratada na corporação e como tem conduzido esta demanda?

HELENA – É uma preocupação institucional trabalhar as questões de gênero e de raça dentro dos nossos cursos. Nós Criamos uma Diretoria de Polícia Comunitária e Direitos Humanos para ouvir os grupos, para ouvir esta crítica da sociedade, trazê-la para os nossos bancos escolares, trazer para o nosso planejamento estratégico e poder dar uma resposta melhor para a sociedade do que meramente negar. A polícia realmente tem alguns eventos que podem ser questionados, por exemplo, do ponto de vista racial. Por outro lado, os nossos policiais vêm até nós na faixa etária de 18 a 30 anos, de um meio social e já com seus conceitos e preconceitos. Na verdade, temos que desconstruir alguns preconceitos e incutir nessas pessoas o verdadeiro sentido de ser policial militar que é justamente a defesa das pessoas que mais necessitam da polícia, pois quem tem segurança particular não precisa da polícia. Quem precisa da polícia? São as comunidades e é justamente, às vezes, aonde as pessoas são mais refratárias à atuação policial. A gente faz esse diagnóstico, a gente ouve as pessoas, a gente ouve as críticas, e a gente busca resposta para o que é apontado. E isso para mim como mulher negra é fundamental. Por onde eu passei, sempre trabalhei bastante com a tropa, com as pessoas subordinadas, principalmente este viés de que alguma coisa está levando as pessoas a achar que a instituição trabalha contra algumas vertentes.

RAÇA – A formação da senhora é extremamente sólida, na Academia do Barro Branco, que é uma academia de excelência, e de uma policial com uma formação rígida, pronta para atender de forma extremamente disciplinar. Mas hoje a senhora está numa posição que é mais política. Como lidar com estas duas frentes para resolver as questões práticas e diretas, principalmente na questão política, que exige certa flexibilidade?

HELENA – Hierarquia e disciplina são para a vida, não para a organização militar. É necessário, para qualquer coisa, que você se disponha a fazer. Você quer perder um quilo, você tem que ter disciplina. Na verdade me ajuda bastante, porque as secretarias de um modo geral são órgãos técnicos que têm que embasar as decisões. Você vai levar uma decisão para o governador, vai debater isso com outro secretário, você tem que levar os aspectos técnicos daquilo e ver onde o aspecto político, a decisão política, sem descaracterizar aquela necessidade de ir para um determinado caminho.

RAÇA – Nós vivemos um momento extremamente complexo, difícil econômica e socialmente. Para a senhora, uma mulher negra, militar em um espaço de poder como é enfrentar este ambiente? Como manter este perfil de tranquilidade diante de algumas pressões inevitáveis?

HELENA – É disciplina também. Como eu disse, disciplina é para a vida. Não é para entrar em forma, prestar continência. A gente lida com o pior do ser humano, e isso a gente tem de dizer. Ninguém, quando está bem, lembra que a polícia existe. A polícia é convocada quando as relações humanas se desviam e acaba tendo algum problema. Lidamos o tempo todo com a morte, com a doença, com a desesperança. Isso nos transforma e algumas condutas que tínhamos antes, à medida que se vai ganhando experiência profissional, mudamos. Você para de frequentar alguns locais, passa a ser mais rigoroso até com a própria família, você muda e quer mudar a conduta dos outros. Só que esta postura muito rígida, por outro lado, pode levar justamente para aquilo que você está tentando evitar. Este equilíbrio é uma coisa minha, do meu caráter, da minha personalidade, tentar achar este equilíbrio para não ficar uma pessoa muito radical.

RAÇA – Uma discussão que se tem muito hoje, entre o movimento negro, principalmente o de mulheres negras, é sobre a vida acadêmica. A senhora tem mestrado e doutorado. A discussão é sobre a solidão da mulher negra que atinge determinados patamares como o seu. A senhora também tem essa sensação, o que a senhora pensa desta discussão?

HELENA – Naturalmente, quando você opta por atividades que vão te tirar de casa, que você vai se submeter a viagens, postos distantes às vezes do lar acaba sendo o caminho natural, você deixar à parte o relacionamento, os filhos etc. Não é intencional falar “não! Eu vou pensar em ter uma família aos 35”. Nenhuma mulher fala isso, mas o caminho parece que vai se delineando desta forma. “Ah! Este ano eu estou fora da minha cidade, então quando eu estiver lá eu vou priorizar esta questão e tal, tal, tal…” Surge então um curso que vai me levar dois meses e meio para os Estados Unidos. “Quando eu voltar eu vou…” E aí as coisas vão acontecendo e vão te tirando, e quando você se dá conta… a gente se depara com esse dilema. Tem muita mulher independente desse viés da raça, reclamando da mesma coisa. No momento em que eu poderia/tinha até às vezes um namorado, uma pessoa bacana, eu estava preocupada em terminar minha pós, aí eu deixei para outro momento e as nossas vidas tomaram rumos diferentes. A gente ouve muito essas histórias. Minha vida tomou um rumo, a dele tomou outro e acabou não dando certo. Hoje que eu estou pronta, eu tenho tudo, eu tenho uma profissão, vida financeira estável, eu tenho maturidade para ser mãe, para educar outro ser, porém hoje eu já não encontro parceiro que eu considero ideal. É o dilema da mulher moderna mesmo, não tem como fugir muito disso.

RAÇA – Órgãos internacionais como a ONU estão fazendo uma campanha contra a morte de jovens negros na periferia, que é um caso de calamidade pública, como é que a senhora vê isso e que saídas a gente tem para isso?

HELENA – Na minha tese de mestrado falei sobre vitimologia e tive como orientadora Sueli Andruccioli Felix. Ela fala muito sobre a questão da exposição ao risco, da vulnerabilidade social. Quando a gente pega a evolução histórica do negro na sociedade, o negro está em situação de maior vulnerabilidade social. Essa exposição ao risco é um fator preponderante. Morre mais gente na periferia, na comunidade. São lugares mais populosos, não é só uma questão estatística. Quando você faz a proporção, ela é realmente muito maior. A segurança pública é reflexo de todas as outras áreas que vão mal, é um problema que estoura, nós somos o fim da linha. Quando aquele jovem se defronta com a polícia, esta foi a última etapa de uma vida de violação de direitos; quando aquela jovem engravida aos 16 anos na comunidade, já houve uma violação de direitos humanos, porque ela deveria ter tido uma assistência, uma formação que não a levasse a esta situação. Isso é uma situação de vulnerabilidade social, e aí ela tem uma gravidez sem pré-natal, sem nenhum direcionamento, sem coisa nenhuma. E aquela criança nasce, e já brinca ali no esgoto, isso tudo já está previsto na Constituição que a mãe tem direito à assistência, à maternidade, ao saneamento básico, à educação. Isso tudo são violações dos Direitos Humanos, que vêm caminhando e um dia sendo culpado ou não, aquele jovem acaba se defrontando com uma  situação de violência e acaba morrendo. Se não pensarmos de uma forma macro e só ficarmos protestando, não caminhamos. Ninguém está vendo todo este quadro social que poderia ser mudado com professores melhores, que detectassem os problemas sociais, que orientassem melhor, que direcionassem este jovem. Se estas questões não forem trabalhadas, infelizmente continuaremos chorando e lamentando.

RAÇA– E que recado a senhora daria para essas jovens que queiram seguir a sua carreira, seguir o seu exemplo, chegar até aonde a senhora chegou num espaço tão privilegiado, tão importante. Qual é o caminho?

HELENA – Tenha muita confiança em quem você é. Nós temos de saber quem somos e que somos capazes em primeiro lugar. Se outro estará lá, vendo isso ou não, o problema é do outro. Temos de ter uma postura combativa naquilo que tem que ser combatido. A cura vem de dentro. Preocupe-se com seu nível educacional, com as suas posturas perante a sociedade, perante os seus para depois exigir que as pessoas tenham essa devolutiva em relação a você. Quando criamos meninas negras, é preciso trabalhar muito a autoestima e a confiança. Na nossa geração ninguém trabalhou isso conosco. Fomos “meio” que desbravadores disso. Falamos que precisamos de políticas públicas, como se aquilo fosse um problema do outro; a gente sempre se coloca muito distante do problema, mas eu sou parte da solução do problema, então eu tenho que mudar minha postura principalmente quando eu tenho pessoas que eu influencio.

RAÇA – Como sua família convive com sua atividade profissional e política?

MACAÉ – Sou de uma família muito pobre e simples do interior de Minas Gerais, São Gonçalo do Pará. Minha mãe é professora e meu pai foi pracinha na Segunda Guerra Mundial e depois foi auxiliar de serviços gerais na Secretaria de Estado de Educação. Minha família sempre participou de atividades comunitárias. Osvaldo Catarino, meu pai, participou de uma das primeiras organizações negras de Belo Horizonte, a Associação José do Patrocínio, e mamãe, com mais de 70 anos foi vereadora em nosso município. A família tem uma história de resistência, inclusive à ditadura militar. Minha prima, Conceição Evaristo, é um exemplo disso. Minha trajetória, na educação, nos movimentos sociais e agora na política é uma forma de luta.

RAÇA – Quais as principais experiências que vivenciou e que a fizeram olhar para a Educação como uma missão possível?

MACAÉ – A primeira experiência é pessoal. Vejo o efeito da escolarização da minha mãe, que fez o ensino médio, e marcou a trajetória das quatro filhas. Somos quatro irmãs, todas com formação superior e com uma boa inserção e trajetória profissional. Depois minha inserção como professora de educação básica. Trabalhei 20 anos com regência de classe em comunidades populares. Vivi o estranhamento e o encantamento de crianças negras, de comunidades negras que pela primeira vez viram uma professora negra, uma diretora de escola negra e se inspiraram. O mesmo encantamento eu acompanhei no processo de formação de professores indígenas e organização das primeiras escolas indígenas em Minas Gerais.

RAÇA – A mulher negra ainda ocupa os piores indicadores sociais, mas mantém um histórico de protagonismo no empreender. Como tem sido ocupar espaços de poder onde a maioria dos seus pares são brancos?

MACAÉ – É difícil e solitário. Não há um só dia sem uma dose de racismo. O que varia é só o tamanho da dose. Nos espaços de poder há muito racismo e machismo. O racismo institucional está aí escancarado. Basta vermos o golpe nos direitos trabalhistas, nos direitos sociais, as investidas contra os direitos das comunidades quilombolas, os ataques às religiões de matriz africana, as tentativas de desqualificação da política de cotas e de promoção da igualdade racial. Mais do que nunca, precisamos nos apresentar e ocupar esses lugares. E vale lembrar: representatividade importa sim. Queremos mulheres negras nos espaços de poder e de representação – nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional.

RAÇA – De que maneira a educação no Brasil caminha para que as escolas possam efetivamente formar cidadãos que respeitem os Direitos Humanos com olhar para as diferenças?

MACAÉ – A escola sozinha não transforma a realidade, mas é parte fundamental desse processo, ensinou Paulo Freire. A sociedade brasileira convive com dilemas éticos que precisam ser resolvidos de forma coletiva. O racismo institucional é um deles. A escola pode contribuir para a superação do racismo, mas é preciso transformar as estruturas de Estado. Não é possível convivermos mais com a monstrualização e criminalização da pobreza. Cenas de jovens negros sendo assassinados foram banalizadas. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Em nome de uma pretensa meritocracia, os negros não tiveram/não têm espaço nas universidades, no poder judiciário, no legislativo, nas gerências de empresas. Eleições livres, respeito às regras democráticas, fortalecimento da escola pública, a revogação do congelamento dos investimentos em educação, cultura, assistência social, promoção da igualdade racial e outras políticas sociais são condicionantes para a retomada da democracia. Sem democracia não tem Direitos Humanos.

RAÇA – Que tipo de avanço as questões das relações raciais no Brasil conquistaram com as leis 10.639 e 11.645, principalmente no que diz respeito à adesão e ao engajamento dos docentes (não negros)?

MACAÉ – A aprovação da Lei 10. 639, de 2003, é um divisor de águas e muitas mudanças aconteceram desde 2003. A construção de editais específicos pelo MEC como os do Uniafro, indutores da constituição de Núcleos de Estudos Africanos Afro- Brasileiros nas Instituições de Educação Superior. São quase 200 no país de acordo com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Construção de Diretrizes de Educação para as Relações Étnico-Raciais, inclusão da História da África e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares. A inclusão de disciplinas específicas em cursos de graduação, bem como a construção de cursos de pós-graduação para atender à legislação. É visível a mudança no mercado editorial, por exemplo. Em 2004, livros de literatura infantil com personagens negros(as), com uma visão positiva da população negra, eram poucos. Dez anos depois o cenário era outro. Hoje, temos diferentes materiais didáticos e paradidáticos sobre o tema, bem como é muito marcante a produção de escritores e escritoras africanas e afro-brasileiras em circulação. Os docentes têm se apropriado da legislação, mas vale lembrar que o currículo escolar é um território em disputa e que o racismo institucional ainda influencia fortemente as escolas. Essa legislação, fruto da luta do movimento social negro, colocou o debate racial no Brasil em outro patamar e, também, por isso vivemos uma mudança na etiqueta das relações raciais no Brasil, tanto do ponto de vista do empoderamento da população negra, quanto da reação virulenta de setores racistasda sociedade brasileira.

RAÇA – A senhora acredita que somente as cotas raciais poderão ampliar o número de negros nas universidades?

MACAÉ – As cotas raciais são instrumentos importantes de ação afirmativa e objetivam reduzir a desigualdade de acesso à Educação Superior para as populações preta, parda e indígena. Eu estava na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação, quando conseguimos aprovar a Lei de Cotas. Fui responsável pelo monitoramento da sua implementação, bem como pela instituição do Bolsa Permanência, que era outro instrumento importante associado às cotas para garantir a permanência da população mais pobre na Educação Superior. Ações Afirmativas é uma luta do Movimento Negro desde a década de 40 do século XX e da Frente Negra. Já havia a percepção da exclusão a que estava submetida a população negra da Educação e, em especial, do Ensino Superior. No nosso país, em que o racismo institucional é muito forte, segrega, exclui, instrumentos de redução da desigualdade são importantíssimos se nós quisermos a curto prazo reverter os indicadores perversos que ainda estão colocados para a população negra.

RAÇA – O que a motiva na disputa por uma vaga de deputada estadual de Minas Gerais?

MACAÉ – Essa não é uma decisão individual, mas uma proposição coletiva que eu assumi. O que me motiva a iniciar esse processo é a percepção de ainda termos um longo caminho para construir a democracia racial e superar as desigualdades sociais. No caso de Minas Gerais, não temos representação de mulheres negras nos legislativos estadual e federal, num estado com 53,5% da população negra. Colocar o nome à disposição para uma possível candidatura é contribuir com esse movimento de empoderamento das mulheres negras. É se colocar para disputar um espaço para as mulheres negras na política. Se a gente defende mais mulheres na política, é preciso também que mais mulheres coloquem seus nomes à disposição. E é exatamente para reafirmar toda essa trajetória e essa caminhada, essa luta, que é uma luta coletiva, que eu coloco meu nome à disposição.

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