Trezentos mil mortos, de quem é a conta?

Trezentos mil mortos, uma tragédia humanitária que jamais poderíamos imaginar que o país do samba, do carnaval, do sorriso fácil e da famosa frase “Deus é brasileiro” teria que contar. Mas quando e como isso aconteceu? Como o país do futuro passou a ser o país do futuro obscuro?

 Começamos com uma mentira, uma invasão da qual, para romantizar o saque, a exploração e o extermínio de milhares de tribos indígenas, trocamos o nome para “descobrimento do Brasil”. Depois foram 380 anos de torturas, estupros e exploração e morte de negros e negras, em que mudamos novamente o nome de escravização de povos livres da África, para escravidão negra no Brasil, mentira que permanece ainda hoje nos livros e bancos escolares.

No final do século 19, após um golpe militar, nasce a nossa República, instituição essa que também insistimos em querer esconder seu berço nascedouro, os porões dos quartéis que antes se dedicavam a perseguir, aprisionar e oprimir povos escravizados. De ditaduras em ditaduras, de estados novos ou repúblicas velhas, passamos o século vinte brincando de democracia, tivemos até eleições em períodos ditatoriais, sendo fantoches de potências externas e de uma pequena elite, ora cafeeira, ora pseudo industrial, ora militar,mentindo para nós mesmos que éramos livres e democratas.

Tentamos esconder nosso autoritarismo que aniquilou por quase a totalidade seus povos indígenas, que escravizou milhões de seres humanos, e que perseguiu, trancafiou, torturou e desapareceu com milhares de pessoas que ousaram questionar esses regimes ditatoriais que permearam o século 20.

Entramos no século 21 acreditando que a tal democracia, cantada em prosa e verso, finalmente aportaria depois de 500 anos em terras tupiniquins. E parecia real que, no século 21, repararíamos distorções históricas com as populações negras, indígenas e periféricas: foi neste início de século em que mais negros e pobres entraram nas universidades e que, em nossa história, mais se deu atenção a terras indígenas e quilombolas, onde pudemos ver o primeiro negro chegar à suprema corte mais de 100 anos após a abolição da escravatura.

Mas as estruturas autoritárias, excludentes, reacionárias, violentas e racistas permaneceram intocáveis, agindo nos porões obscuros desta sociedade travestida de democrata, que só não consegue se esconder dos números denunciados por organismos internacionais como Anistia Internacional, que apontam: Aqui continua sendo o país que mais mata jovens negros no mundo, que mais mata homossexuais no planeta, e que a cada oito minutos uma mulher é estuprada.

Essa realidade que não é de hoje ganha luz e institucionalidade quando a maior autoridade do país expressa atitudes comuns àsnossas elites, como o negacionismo: nega-se tudo, o racismo, a violência e agora a letalidade de um vírus quase democrático. Digo quase, pois, o entubado no Albert Einstein é bem diferente – inclusive na cor – de quem tem que esperar uma vaga em uma UPA nas periferias de nossas cidades. E aí o racismo histórico e estrutural mostra sua face em números incontestáveis do próprio Ministério da Saúde, que descreve que “pardos” e pretos são os que mais morrem vítimas de Covid-19 no Brasil.

Mas, de quem é a conta? A conta não é apenas dos lunáticos e terraplanistas que estão no poder ou dos que os colocaram lá, a conta é de todos aqueles que, por décadas ou séculos, esconderam-se atrás do país do futebol, do carnaval, da democracia racial, do jeitinho brasileiro, de frases como “política e religião não se discute”, dos que que nunca fizeram nada para contestar, por exemplo, a péssima qualidade da educação direcionada ao povo brasileiro.

Buscar um culpado, um bode expiatório ou um salvador da pátria tem sido a saída ao longo de nossa história, e, por isso, pagamos agora o preço alto de ser a escória e ameaça ao Planeta, como nos intitulamos em carta do senado federal para diversos organismos internacionais. Nunca encaramos a responsabilidade que habita em nós mesmos, em que a única saída é assumir as mentiras, os prejuízos históricos e investir em educação, na ciência, na cultura, na reparação histórica. E, neste momento, é difícil desmascarar, denunciar e substituir democraticamente uma elite política e econômica genocida que há séculos oprime este país.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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