Uma conquista da mulher preta e periférica: Luanda Moraes, primeira reitora negra da Uezo

Pela primeira vez, uma universidade estadual no Rio de Janeiro será comandada por uma mulher negra. A partir de janeiro de 2021, Luanda de Moraes, de 43 anos, assume a reitoria do Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (Uezo), inaugurado em 2005. Nascida em Rocha Miranda, na Zona Norte, Luanda estudou em escolas públicas e se formou em Engenharia Química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em 2002. Após a graduação, ela se capacitou ainda mais, fazendo mestrado e doutorado em Ciências e Tecnologia de Polímeros, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua trajetória na UEZO iniciou em 2009, quando ingressou na instituição como professora contratada. Já em 2012, prestou concurso e se tornou professora adjunta. Desde 2017, é vice-reitora do centro universitário e atua na orientação de alunos de graduação e pós-graduação em pesquisas acerca de energia renovável em parceria com o Inmetro. “Tenho plena consciência do que isso significa como um todo. Quando os alunos negros vêm me agradecer pela representatividade, isso reforça a minha missão de seguir em frente. Tenho orgulho em dizer que a Uezo tem mais da metade do seu quadro de alunos composto por estudantes que ingressaram pela política de cotas, baseada no programa da ação afirmativa”, diz Luanda.

Revista Raça: Conte um pouco a sua história, suas referências e influências desde a infância, para chegar até aqui.
Luanda Moraes: Sou filha de uma família preta de ambos os lados. Meu pai, Alberto de Moraes e minha mãe, Efigênia Conceição Silva de Moraes. Meu pai, falecido em 2018, era um homem que eu admirava muito. Teve família, criado pelos avós maternos, porque sua mãe era portadora de esquizofrenia e com isso eu nunca estive em um lar com a minha vó, sempre a encontrei no manicômio. Atualmente minha irmã é assistente social com uma política antimanicomial. Meu avô paterno era ferroviário e era ele quem contribuía para o sustento. Já minha mãe era órfã desde os 2 anos de idade e meu avô era baiano, veio para o Rio de Janeiro trabalhar como alfaiate. Tenho dois irmãos, Eloá e Rodrigo, também oriundos da faculdade pública. Ele é estudante de Geografia e fez um caminho um pouco inverso do nosso, é petroleiro concursado. 

R.R.: Seu pai serviu muito de inspiração para sua vida escolar, certo?
L.M.: Ele gostava de estudar e isso, inclusive, o fez ser entendido como um jovem com problemas. Isso me doeu muito quando eu tive noção dessa realidade. Aos 4 meses de vida participei da formatura dele em Engenharia Química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Minha mãe sempre o apoiou. Houve uma grande crise da década de 1980, nós sofremos bastante com o desemprego de meu pai e tivemos dificuldades financeiras. A opção da minha mãe foi cuidar da gente. Morávamos em Rocha Miranda, um bairro periférico do Rio de Janeiro. Estudei em escolas públicas. Lá em casa nunca faltou empoderamento, conversa, incentivo para que alcançássemos o espaço que desejássemos e isso nos fortaleceu. Recursos financeiros, não tínhamos muitos. A prioridade era sempre oportunizar o estudo e retardar nosso ingresso no mercado de trabalho para sobrevivência.

R.R.: Como foi seu primeiro contato com o racismo?
L.M. Desde pequenininha, na escola, eu sofria racismo, até da coleguinha do lado, porque o racismo não está só em locais de alto poder aquisitivo. Eu sempre usei cabelo black e isso na década de 1980. Com oito anos, ouvia da colega: “vem cá, você vai vir todo dia com esse cabelo?” E aí eu falava pra ela: “eu vou vir sim, esse cabelo é meu, ele é lindo e eu vou vim sim”. Esse empoderamento vinha dos meus pais, pessoas que estavam ali do nosso lado. Essa coleguinha cada dia ela ia com um penteado, cabelo solto, Maria Chiquinha, rabo de cavalo, coque e aí ela zombava de mim.

R.R.: A senhora tem uma atuação também no movimento negro. É mais uma característica da sua família?
L.M.: Minhas referências familiares foram meu incentivo. Meus pais e meus tios sempre participaram do movimento negro na década de 1970 e 1980. Eles tiveram participação nos resultados da Lei contra o racismo, dos avanços que nós temos, da lei das ações afirmativas e reparatórias. Ter uma família engajada foi fundamental para mim, para os meus irmãos e também para os meus primos.

R.R.: Como a senhora vê o empoderamento de mulheres negras neste momento?
L.M.: É o resultado de muita luta. Eu vou lá atrás, a luta de todas as ancestrais e de todas as mulheres negras que fizeram Quando os alunos negros vêm me agradecer pela  representatividade, reforça a minha missão de seguir em frente e abriram caminhos para nós, mais jovens, estarmos alcançando esses passos, apesar de a sociedade racista, estruturada dessa forma, nos impedir, fechar portas a todo momento pra não conseguirmos. Tudo está sendo possível porque houve um trabalho anterior e eu fico feliz, sim, pelo avanço das mulheres na política. Eu entendo que isso é resultado dessas políticas de Ações Afirmativas. Nós vivemos alguns anos no Brasil de investimento em educação, anos anteriores a essa fase absurda que estamos vivendo da falta do incentivo. A minha experiência, por exemplo, mesmo do doutorado, aconteceu no ano de 2008, em uma época em que o Brasil estava tendo muitos investimentos em educação. Ainda assim precisamos aumentar esses números. As políticas de Ações Afirmativas estão aí, embora de forma tímida, mas elas já estão dando resultado e a gente não pode é tratar esse dado como pequeno, como pouco. Muita coisa ainda precisa acontecer. 

R.R.: E como se sente sendo a primeira reitora negra de uma universidade?
L.M.: Na verdade, eu não sou a primeira reitora negra. A UERJ teve uma reitora que fez um caminho muito parecido com o meu na vice-reitoria, a professora Nilcéia Freire, que foi Ministra do Estado, chefe da Secretaria de Políticas para Mulheres do Brasil, na presidência do Lula. Ela esteve na vice-reitoria de 1996 a 1999 e de 2000 a 2004 como reitora. É importante também pontuar, obviamente, que duas mulheres negras é um número extremamente ínfimo. Acredito que nós precisamos reforçar ainda mais a presença do povo preto e, sobretudo, dessas mulheres pretas. O povo preto é sustentado pelo matriarcado. Isso é o que nos faz realmente diferentes. Precisamos muito mais de política de inclusão e de reparação. 

R.R.: Qual o legado que a senhora espera deixar, à frente da reitoria?
L.M.: Além de contribuir para o desmonte de uma estrutura racista no Brasil, obviamente, que junto com outras ações de outros colegas, como o senhor por exemplo, mas é uma contribuição. Além disso, atuando diretamente nessas populações, eu vou chamar esse povo de meu povo preto e mostrar para eles que, apesar de todos os ‘nãos’ que recebemos, que sempre recebemos há séculos, apesar dessa discriminação, desse racismo que a gente sofre, que eles nunca desistam de ser aquilo que eles desejam ser, porque todos temos um potencial inato, imenso. Nós, o povo preto, que já passamos por escravidão, por tratamentos desumanizados e que, até hoje, isso é tratado de maneira natural. Eu quero dizer dizer para esses jovens que eles podem alcançar o que desejarem e que eu estarei atuando para isso. 

R.R.: É a sua missão?
L.M.: Estou neste local exclusivamente porque tenho essa missão de dizer para eles que eles podem e que eu estou aqui para apoiá-los a alcançarem os espaços através de uma formação profissional no lugar em que atuo, que é a UEZO. Esse caminho que eu fiz, esse lugar que eu conquistei, não pode ser naturalizado que eu conquistei apenas por meus esforços. Como citei anteriormente, isso não pode ser entendido que quem não conquista não se esforçou o suficiente e não é isso. Quem não conquista, muitas vezes, não tem estrutura que os permita caminhar. As opções são sempre muito poucas. O Brasil não pode continuar naturalizando as exclusões. Não pode ficar naturalizando e dizer que foi por falta de esforço que a pessoa não chegou. Ela não chegou por falta de opção, na maioria das vezes. 

R.R. Qual seria o seu conselho para as novas gerações?
L.M. Que cada um se mantenha firme, confiante para que possa alcançar com clareza os seus objetivos. Às vezes as pessoas sequer têm objetivo. As pessoas precisam consigam nutrir um espírito de jamais serem derrotadas, independentemente de qualquer circunstância. Que nossos jovens sejam um sol, que tenham um potencial. Isso tudo já está dentro de cada um. Nós estamos aqui para apoiá-los, estaremos sempre perto. Mas é preciso perceber que esse espírito, esse potencial está dentro deles e que eles podem contar com meu apoio.

R.R.: A senhora tem a dimensão da sua representatividade?
L.M.: Sou apenas uma representante de uma população brasileira negra, de uma população que, segundo o IBGE, é de 56% de negros autodeclarados. Então, eu sou apenas uma representante. Tudo que eu alcancei, que eu estou alcançando, ainda não é o fim. Todos podem e eu ficarei muito feliz quando outras pessoas tiverem a oportunidade de me ultrapassar, alcançar espaços de maior representatividade do que alcancei.

(fotos Paulo Vitor/ Governo do Estado do Rio de Janeiro)

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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