Sobre esperança e liberdade
Estamos vivendo tempos sombrios, não podemos negar, mas no fundo da nossa alma, sabemos que momentos de dor e sofrimento como estes, outrora, já foram transformados em luz, que o nosso corpo e a nossa essência são fechados por aqueles que nos guiam – nossos ancestrais. Estamos em fluxo, em plena conexão com as memórias que nos fizeram gente, carregadas de elementos de força, de um coletivo que, no chão batido, lutou bravamente para abrir o nosso caminho, e a eles pedimos licença: AGÔ. Dos Orikis que nos alfabetizaram, Ossain já descobriu o remédio para as nossas doenças, pois Obatalá sempre apazigua Iku e o Tempo… haverá Kitembo para uma nova existência de liberdade, porque “mesmo que a árvore caia, se a raiz estiver viva, brotará”, Kiamboté Tat’etu Kidembu, Kiuá! (Eu te saúdo nosso pai Tempo, Salve!)
Quando poderíamos pensar que o mundo inteiro teria que diminuir a velocidade predatória de suas ações e reavaliar o que para si é verdadeiramente importante? Como lidávamos com a noção de esperança e liberdade antes de tudo isso mudar nossas vidas? Outrora, acreditamos que a comunicação virtual poderia substituir a presencial, mas jamais pensamos que sentiríamos tanta falta de um abraço, de um toque, de uma conversa mirando os olhos de outra pessoa. Mas o mundo se acelerou e nos fez pensar que alteramos o valor e a noção da vida real e material, que poderíamos suplantar a força da natureza e que não precisávamos de sua energia. Antes de tudo mudar, jamais nos sentiríamos tão próximos das ações de sobrevivência que as nossas famílias, descendentes de África criaram, constituindo-se como Quilombos, materializando o
senso de esperança e assim redesenhando o conceito de liberdade.
Para ilustrar esse contexto, convidamos Shai Andrade, mulher negra, de vinte e oito anos, para expressar o seu conceito de esperança e liberdade, sob um olhar cheio de luz e sutileza. Há dez anos na fotografia, Shai é realizadora audiovisual e diretora criativa. Graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Artes (Concentração em Cinema), na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em sua trajetória artística participou de festivais de Imagem e exposições coletivas, transitando entre o Centro Cultural Brasil México (CDMX), The Fowler Museum Los Angeles (EUA), no Goethe Institut Salvador (Bahia). No cinema fotografou e codirigiu os filmes da artista e curadora Ana Beatriz Almeida, exibido no Festival Internacional de Arte
Contemporânea de Glasgow e no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Teve seu trabalho publicado na Revista de Fotografia OLD e foi uma das fotógrafas entrevistadas para o documentário "Fotográficas" da TVE (Bahia).
É uma sutileza a presença de Shai Andrade nas localidades que visitou e cujas imagens trazemos aqui; sua lente produz imagens como observadora participante – seus olhos captam a simplicidade de uma luta cotidiana, produzindo respeitáveis memórias dessas comunidades, e registrando o afeto de um povo nas Comunidades Quilombolas de Jetimana (localizada na zona rural de Camamu – BA), Lagoa Santa (situado entre os municípios de Ituberá e Nilo Peçanha, na região do Baixo Sul da Bahia), Bananal (próximo da histórica cidade de Rio de Contas, ao sul da Chapada Diamantina).
Numa entrevista cheia de poesia, ela compartilhou conosco o seu ponto de vista sobre o que intitula como “Retratos Ancestrais” e nos conta que seu processo artístico busca imprimir a manifestação da beleza através de imagens documentais e experimentais, que, em sua maioria, refletem sobre a poética das narrativas afetivas e sensoriais afrodiaspóricas:
– “Eu sou quem escreve a minha própria história e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político”, disse Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (2019). Portanto, assim como Grada, vejo a criação como um ato de
esperança e, na minha trajetória, é a fotografia e, agora, o cinema, esse instrumento de autoenunciação. A voz que ecoa da arte negra é poderosa, ela é capaz de evocar, cartografar memórias e manifestar a dor e a beleza de uma raça.
– Qual a sua busca nesses registros documentais?
– As narrativas de afeto e cuidado, impressas nas imagens dos Quilombos, são também narrativas de cura. Nos tempos que correm é preciso silêncio e recolhimento, reaprender a cuidar do outro, do mais velho, do nosso divino e reconectar com as tecnologiasancestrais.
– Como você traduz esperança e liberdade nesse contexto?