A Ford e a negritude brasileira
Economia,melhor dizendo,economia capitalista, esse é um assunto no qual a comunidade negra brasileira não é muito familiar. Menos ainda suas lideranças, mais preocupadas com as dimensões conceituais. O racismo de todas as ordens (estrutural, institucional e social) aliado às exclusões de todas as ordens,funciona quase como um bloqueio mental a esta importante dimensão do combate ao racismo, que é a econômica. Em verdade, a situação econômica da maioria dos afrodescendentes no Brasil é tão vexatória que a prioridade para a maioria ainda é uma vaga de emprego seja ele qual for.
Isso explica em certa medida o impacto que terá sobre a comunidade negra brasileira a saída da Ford do Brasil, notadamente na cidade do Salvador, onde esta empresa se instalou há quase vinte anos e teve todos os privilégios, vantagens e bajulações possíveis. A chegada da Ford na Bahia (ano dois mil)teve um impacto econômico e cultural para a Bahia, semelhante ao da criação do Polo Petroquímico, no final da década de 70. Estimulados por toda a sorte de vantagens, empresas obsoletas norte americanas e europeias, tanto no campo da petroquímica quanto no automotivo, resolveram se instalar em países da América do Sul para desovarem seus equipamentos e modos de produção industriais atrasados e em estado terminal.
Na Bahia, tanto o Polo Petroquímico quanto a Ford, proporcionaram a melhoria econômica de uma pequena, porém expressiva, parcela da comunidade negra de Salvador. Caracterizando-se como o inicio de uma classe média baixa negra na cidade. Este fenômeno impulsionou movimentos culturais, bailes blacks e de combate ao racismo, Blocos Afros e Afoxés. Antônio Carlos dos Santos Vovô e João Jorge dos Santos Rodrigues, Presidentes do Ilê edo Olodum são frutos dessa safra. Ambos trabalhadores do Polo Petroquímico e que lideraram e ainda lideram boa parte das ações de combate ao racismo e de difusão da música de origem negra local.
A sustentação dessas organizações era feita por uma classe média negra que ansiava por reconhecimento e respeito, onde a política era uma mera visitante de ocasião. O Carnaval foi a forma perfeita para esse modelo organizacional. Acolhia uma classe média negra antenada com os movimentos pelos direitos humanos nos Estados Unidos (Black Panthers, Black Music, etc.), intelectuais brancos que davam amparo político e uma musicalidade absolutamente inovadora que foi o samba reggae. Cabelos blacks, depois dreads locks, batas, calças boca de sino, sapatos cavalo de aço eram consumidos como relíquias da modernidade.
Não por acaso a Fundação Ford investiu fortemente junto ao movimento negro brasileiro com bolsas de estudo e trabalho, e apoio a projetos da cultura negra, tanto individuais quanto coletivos. Mas, nunca nos perguntamos ou sequer entendemos o porquê desses apoios da Ford. Disputávamos avidamente os acenos da instituição tendo em vista que no Brasil esses apoios eram praticamente impossíveis, sem perceber que era o nosso próprio povo que financiava aquelas incipientes ações de forma indireta.
Pois bem, de mais de vinte bilhões de reais em isenções de todas as ordens que foram investidos no Parque automotivo da Ford no Brasil. Ou seja, além de não terem tido nenhum custo na implantação da Fábrica, que gerou empregos defasados, pequenos para o tamanho do investimento e que ganhou rios de dinheiro a Ford está nos deixando. Afinal, por conta da crise do Coronavirus, a mamata acabou. Esta dura lição deve servir de exemplo, particularmente para o movimento negro, no sentido de não só introduzir essa discussão entre as medidas de combate ao racismo estrutural como estar atento aos modelos de desenvolvimento econômico do país seja ele de esquerda ou de direita que não contemplem a inclusão dos negros/as no mercado de trabalho e na geração de emprego e renda. Até porque ao final e ao cabo quem pagará essa conta seremos nós.