A reinvenção da reinvenção da arte

Arte. Palavra que se origina do vocábulo latino ars, que significa técnica ou habilidade. A reinvenção é o ato ou efeito de reinventar. É reformular ou recriar algo que já existe. Parece brincadeira minha, e quase é, reforçar tais significados, mas é que a gente vai precisar lembrar deles ao longo dessa nossa reflexão.

Pandemia. Essa palavra eu não me atrevo a explicar e muito menos a brincar com ela. É tudo tão difícil, triste e assustador, que não cabe mais nada que não seja afeto, solidariedade e arte. Muita arte e sobretudo a reinvenção dela. Esse é o nosso assunto.

O artista sempre esteve à frente do seu tempo. É um processo natural dentro da sociedade, porque o processo criativo se dá a partir da percepção do mundo, com o intuito de expressar emoções, ideias, sentimentos e tudo mais que vier no corpo, na alma e na mente. Acontece que existe uma nova dinâmica social imposta pela pandemia do coronavírus. Entre perguntas sem respostas, medo e desgoverno, fome e distanciamento social, quem não entrou (e nem podia entrar) em isolamento foi a arte. Quem não negou amparo às pessoas foi a arte. Quem se mantém corajosa e afrontosa, sem respeitar a quarentena é ela: a arte.

Não é exatamente a pandemia que fez a arte se reinventar, afinal, vale lembrar que antes a cultura brasileira já vinha sofrendo ataques, descasos, rasteiras e um desrespeito tão severo que nem as palavras, aquelas que nunca falham, dão conta. É que quando o artista pensava que estava no seu limite, que nada mais grave poderia lhe acontecer, aí veio a Covid-19. Aquilo que mais parece um enredo de um roteiro de ficção científica chegou assim, meio mal-educado, e entrou pela porta do mundo afora, fazendo… bom, você já sabe.

O fato é que para a sobrevivência de todos, lá vem ela fazendo a reinvenção da reinvenção. A parte bonita do feio, a parte alegre do triste, a parte forte do fraco e tantas outras analogias que só se dá no campo da arte. É ela que está com a mão na massa, ou no computador, na verdade no telefone celular eu diria. É lá que tudo acontece, tudo mesmo. O cinema, o teatro, a performance, a música, o desenho, a pintura, a dança, a arquitetura, a poesia, a literatura e as mais impossíveis linguagens possíveis. Lembra que arte significa técnica e habilidade? Então, nem o limite da pequena tela de LED é o limite, porque a arte se apodera do que é e dá seu jeito de acontecer. É expert em si mesma. Não agoniza, não morre.

No momento que mais se pede troca de experiências, imagina se nós não tivéssemos as lives de Teresa Cristina, os saraus de Elisa Lucinda e os shows de Elza Soares. Pensem só: se na hora que mais precisamos fortalecer nossos conhecimentos e convicções, se nós não tivéssemos as aulas de Djamila Ribeiro, os livros de Silvio Almeida, a poesia de Conceição Evaristo, e a música da Liniker? E o que dizer então desse nosso namoro com o cinema de Spike Lee, Ava DuVernay e a descoberta da Cineasta Sabrina Fidalgo e de seu premiado filme “Alfazema”? Não se trata de como será, está sendo! É aqui e agora. A arte socorre, se joga no fogo, se atira no mar e pega nas mãos da solitude ou da solidão que nos assola. Segundo os dicionários e afins, ela pode ser entendida como atividade humana ligada a manifestações estéticas ou comunicativas. Ora, faça-me o favor senhor dicionário, é tão mais.

A tecnologia não veio pra ser tão somente ferramenta ou solução. Ela se estabelece como um caminho irreversível, uma espécie de canal que prova abraçar todas as linguagens e expressões artísticas. Estamos precisados dela, mas também curiosos e sofridos com tantas possibilidades e configurações. Por outro lado, as grandes empresas de telecomunicações devem se apressar para sanar nossa agonia diante da live que cai no melhor da conversa ou que não foi gravada porque a rede não segurou a onda. É preciso também caminhar na direção de entender o que será do artista no pós-isolamento, aliás, quem cuida dele agora? Empatia, por favor.

Esse texto é um brinde, mas não vamos bater nossas taças agora. Não agora por razões óbvias. Por enquanto, fica aqui minha mensagem de esperança e um chamamento para o respeito à arte e ao artista que não te abandonou. Vamos seguir focados também em combater outras doenças, inclusive o racismo que é tão invisível quanto um vírus, quando ninguém quer ver, e tão letal para quem o traz em suas células ancestrais. Esse texto tem a ver com amor e gratidão por tudo que a arte nos dá.

Vai dar tudo certo, vai ter que dar.

 

Texto de Shirley Cruz, atriz, jornalista e apresentadora do programa Café Preta. 

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