Bolsonaro e os descendentes de Isabel

Nesta terça feira,14 de maio, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL – SP) e o tataraneto da princesa Isabel, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, estão convocando parlamentares e amigos para uma sessão solene para comemorar os 131 anos de assinatura da Lei Áurea. Mas o que representa essa data no aspecto histórico, politico e humano para nós, brasileiros de diferentes origens étnicas e sociais?

Do ponto de vista histórico faz-se necessário estudar as profundas marcas que a escravidão deixou em nossa sociedade. E para isso não é preciso ser ativista ou especialista na causa negra. Basta conhecer e entender os dados dos principais órgãos de pesquisa do país, como IBGE, IPEA e Dieese, os quais demonstram que no Brasil o salário médio do trabalhador negro é quase a metade do de seu colega branco; que o negros e negras entram mais cedo para o mercado de trabalho; têm menos acesso à educação e expectativa de vida inferior, ou seja: uma cidadania incompleta que teve início em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea.

Ao analisarmos o aspecto político, verificamos um total descaso da parte de quem mais se beneficiou com os quase 400 anos de escravidão: o Estado brasileiro. Se hoje nos encontramos entre as 10 maiores economia do planeta, devemos nos lembrar de que, dos 508 anos de nossa existência, quase 400 foram construídos basicamente com a mão-de-obra escrava e por isso esse país tem uma enorme dívida para com os afrodescendentes.

Quase todos os países que violentaram os seus (como é o nosso caso) tiveram de ressarcir suas vítimas. O maior exemplo vem da Segunda Guerra Mundial, em que não só a Alemanha teve de arcar em parte com as atrocidades cometidas contra o povo judeu, mas também setores da comunidade internacional mobilizaram-se na construção do Estado de Israel.

Quanto a nós, negros, o Estado brasileiro até hoje não assumiu essa dívida histórica. Nos Estados Unidos, apesar das leis segregacionistas que imperavam após o fim da escravidão, existiram ações focadas na educação e o desenvolvimento da comunidade negra local. Já no Brasil, uma das primeiras leis criadas após o fim da escravidão, foi a “lei da vadiagem”, que autorizava prender qualquer cidadão que estivesse vagando. O Estado brasileiro financiava a vinda de trabalhadores europeus para substituir a mão-de-obra negra, que não foi aproveitada quando não pôde mais ser escravizada. Também aqui foi queimada toda a documentação sobre escravos, com medo de que pudéssemos reivindicar o ressarcimento pelos quase quatro séculos de violência e trabalhos forçados.

Do ponto de vista humano, a resposta que nós, afrodescendentes, demos a este país que nos escravizou, violentou e nada nos pagou foi fantástica! Combatemos a discriminação com diálogo e integração, com a não violência, com organização e trabalho. Nos primeiros anos pós-abolição, criamos a maior organização negra de todos os tempos: a Frente Negra Brasileira, que no início do século passado já se preocupava com a nossa educação e com a política. Marcamos o século 20 em todas as áreas nas quais não éramos preteridos pela exclusão instaurada, por exemplo, nas artes, no esporte e na literatura, imortalizando nomes da magnitude de Aleijadinho, Ademar Ferreira da Silva, João do Pulo, Pelé, Pixinguinha, Cartola, Milton Nascimento, Machado de Assis, Cruz e Sousa, Chiquinha Gonzaga, Lima Barreto, entre muitos outros.

Destacamo-nos até nas ciências (campo restrito aos afortunados da sociedade excludente que se formou), com a genialidade do geógrafo Milton Santos, enfim, demos cara e forma à cultura deste país. Ou como é decorrente a frase no movimento negro “Existia uma África sem o Brasil, é impossível pensar o Brasil sem a África e seus descendentes”.

A batalha não parou por aí: graças a nossa luta recente por ações afirmativas, centenas de universidades brasileiras adotaram o sistema de inclusão de negros, número superior até mesmo ao dos Estados Unidos. Por conta das nossas reivindicações, hoje milhares afrodescendentes estão em universidades pelo sistema de cotas, ProUni etc. Fundamos organizações como a Educafro, o Instituto Steve Biko, Geledes e várias outras oriundas do movimento social negro, que têm levado milhares de negros ao desenvolvimento social e academico.

Por meio da nossa luta, muitas empresas começam a rever seu histórico quadro de exclusão e iniciam a implementação do sistema de valorização da diversidade, dando oportunidades iguais para todos Saímos do nada – de uma aposta da elite racista de que em 100 anos sumiríamos da face do Brasil – para nos orgulharmos de ser o maior país negro fora da África, e que ainda há de ser a maior democracia racial do planeta.

Por: Maurício Pestana: Jornalista, diretor executivo da Revista RAÇA e presidente do fórum Brasil Diverso.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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