Cirrose ou racismo no hospital gaúcho?
Cinco anos após a abolição da escravatura, o médico Raimundo Nina Rodrigues, considerado pai da medicina legal no Brasil, publicava o livro “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, asseverando que os negros teriam propensão genética para a criminalidade.
Transcorrido mais de um século da morte de Nina Rodrigues – que até hoje dá nome ao IML da Bahia – seus herdeiros continuam mantendo intacta a engenhosa e mortífera máquina do racismo cordial brasileiro.
Em 1992, por exemplo, o então Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo manteve a condenação de um acusado porque a vítima se recordava de que ele era preto, ainda que não lembrasse de nenhum outro traço fisionômico ou compleição física.
Vejamos: “Reconhecimento pessoal – Identificação baseada somente na cor – Validade – A Afirmação da vítima de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a afirmação de ser um deles de cor negra e reconhecê-lo, já que o reconhecimento se dá pela segura memorização visual de diversos traços característicos de uma pessoa, ou de um somente, a cor”. (TACRIM-SP, 12ª Câmara, apelação no 753.603/3, julgada em 21.9.92).
É preto, é culpado!!! Vale lembrar que o conceito de culpa pressupõe a ocorrência de um crime, um ilícito, enfim, uma infração qualquer.
Não foi o que houve, entretanto, no último dia 18 de abril no Hospital “Dom João Becker”, em Gravataí/RS, mantido pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Uma funcionária deu por falta de um celular, localizado minutos depois em uma sala restrita a funcionários, mas o “sumiço” temporário do aparelho rapidamente foi transmudado em furto e atribuído ao vigilante Everaldo da Silva Fonseca, negro, de 62 anos.
Depois de cumprir uma jornada de trabalho de doze horas, Everaldo Fonseca dirigiu-se ao hospital para acompanhar sua esposa, Maria Gonçalves Lopes, internada no dia anterior para tratar de uma cirrose.
Acusado de um furto que sequer havia ocorrido, Everaldo foi arrancado do quarto do hospital, agredido física e moralmente, submetido a ultrajes, constrangimentos, humilhações e ofensas de toda ordem.
Sua esposa também teve suas vestes inspecionadas, inclusive fraudas geriátricas, roupa de cama, mobília, cama revirada, enfim, tudo foi “revistado” em busca do celular.
Segundo Everaldo, “A minha esposa faleceu de susto, gritando no desespero, dava para ver isso nos olhos dela. Ela teve um ataque fulminante”.
O atestado de óbito, conforme a família informou à imprensa, apontou “desnutrição grave” como causa da morte.
Descoberto o “mal entendido”, o hospital primeiro ofereceu um lanchinho e pediu desculpas a Everaldo, depois publicou uma nota afirmando que “por circunstâncias o familiar acabou sendo envolvido”. Diz ainda o hospital que uma sindicância foi instaurada e três funcionários foram demitidos.
Quais circunstâncias cara pálida? Quantos outros acompanhantes e pacientes encontravam-se naquela ala do hospital? Por que a suspeita recaiu justamente sobre Everaldo Fonseca? Por que a polícia não foi acionada? Por que uma paciente é internada com cirrose e falece no dia seguinte por alegada desnutrição grave?
O mínimo que a sociedade pode exigir é que a Secretaria de Saúde do estado, os órgãos de segurança pública, o Ministério Público, o Conselho Regional de Medicina, o Conselho Regional de Enfermagem entre outras instituições, investiguem pormenorizadamente os fatos e responsabilizem todos os envolvidos direta ou indiretamente, na esfera cível e criminal.
A prática do racismo, inscrita na Constituição Federal e na Lei Caó, comporta uma infinidade de condutas, inclusive presumir e tratar pretos como delinquentes e submeter enfermos a estresse agudo, a eventos traumáticos capazes de provocar sua morte.
PS: aproveito para convidar leitores e leitoras para acompanharem minha live que acontecerá amanhã, dia 29, às 19 h., no facebook.com/silvajrhedio.