Mauro Silva, único dirigente negro na linha sucessória das federações de futebol

Vice-presidente da Federação Paulista de Futebol, o tetracampeão mundial Mauro Silva não se deixou abater pela adversidade, ao perder o pai aos 12 anos. Incentivado pela mãe, Luzia, foi atrás do sonho de se tornar jogador, sem deixar o estudo de lado – até porque era exigência da matriarca! Treinava nas categorias de base do Guarani e cursava processamento de dados no colégio técnico. Em seguida, formou-se na faculdade de Informática. A formação, complementada por especializações em finanças e gestão no futebol após encerrar a carreira nos gramados, foi fundamental para que ele assumisse o cargo que hoje ocupa. Mauro Silva entende que a escassez de negros em posições de comando está associada à desigualdade social e chama a atenção: a capacitação deve se sobrepor à vivência em campo.

Você nasceu em São Bernardo do Campo, ABC Paulista, perdeu o pai aos 12 anos numa fatalidade. Como foi sua infância?
Tive uma infância muito feliz até perder o meu pai em um acidente de lancha na represa Billings, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Adorava estudar, jogar futebol e brincar com os meus amigos. Meu pai sempre foi muito rigoroso e correto. Ele era o meu herói. Onde ele ia, eu ia atrás. Foi uma relação de poucos anos, porque o perdi com 12 anos, mas foi muito intensa. Sou e serei grato a meus pais pelos ensinamentos que me deram e que me fizeram, como eles, uma pessoa correta, íntegra, honesta e sensível às questões dos outros.

Embora não tenha atuado em grandes clubes do futebol, você se tornou ídolo no esporte nacional, símbolo de determinação, raça e técnica. Essa postura se deve à sua atuação na seleção brasileira?
Acredito que não apenas à seleção brasileira, mas pela entrega e pela luta que sempre procurei mostrar em campo, seja qual fosse a camisa. No Brasil e no exterior, joguei apenas em times que não são considerados grandes, mas que têm uma identificação e uma química enorme com seus torcedores. Foram clubes que me deram todas as condições necessárias, e eu precisava retribuir em campo. No La Coruña, onde joguei por mais tempo, criei uma identificação especial com a cidade e a torcida.

Como foi jogar na seleção tetracampeã brasileira, na Copa do Mundo de 1994?
Eu me considero um privilegiado. O Brasil não ganhava uma Copa do Mundo desde 1970. Não há palavras para descrever a sensação de ser campeão do mundo, de escrever seu nome na história do futebol brasileiro e mundial, de ter conquistado algo que grandes jogadores não tiveram a oportunidade.

Uma das suas grandes façanhas foi o fato de ter recusado um convite milionário para jogar no Real Madrid. O dinheiro não é tudo na vida de um profissional?
Cheguei a recusar proposta do Real Madrid, pois era muito feliz na cidade e muito grato ao Deportivo La Coruña (clube espanhol, atualmente na segunda divisão. Em 2018, Mauro Silva foi eleito pelos torcedores como o maior nome da história do clube, que defendeu entre 1992 e 2005), que sempre investiu e acreditou em mim. Acho que decisões como essa fortalecem essa identificação e a ligação entre atleta e torcedor. Não há dinheiro que pague o carinho e o prazer de ser sempre tão bem recebido em La Coruña até hoje.

É comum os jogadores, quando deixam de jogar futebol, virarem ou técnicos ou empresários de outros jogadores. Você fez uma trajetória diferente, seguiu a carreira de gestor. Por que a opção?
Eu sempre busquei me qualificar, desde quando era atleta na base e o Guarani me proporcionou acesso a estudos de qualidade. O conhecimento empírico não é suficiente para atuar no futebol, ou em qualquer outra área. Quando parei, fiz cursos de finanças, gestão, e ainda hoje procuro fazer ao menos dois cursos por ano.

Por que no Brasil, e talvez até no mundo inteiro, existem poucos gestores de futebol negros?
Não apenas no futebol, mas em todas as áreas. Há uma escassez de negros entre gestores, líderes, empresários e cargos de alto escalão em várias áreas. É um problema estrutural do Brasil, institucionalizado após tantos anos de escravidão, descaso e abandono. O futebol é um reflexo desse abismo social da sociedade brasileira. Os negros possuem menos oportunidades, menor nível de escolaridade, são maioria na população carcerária e morrem mais por homicídios e crimes violentos.

Você já sofreu racismo na carreira de jogador ou de dirigente de futebol?
Aconteceu apenas uma vez num estádio de forma mais direta. Existe ainda o racismo velado cotidiano que acontece em hotéis e restaurantes de luxo. Mas já presenciei situações de racismo entre colegas, amigos, situações cotidianas que mostram o racismo enraizado, estrutural, não apenas dentro de campo, mas também fora dele.

Você é vice-presidente da maior federação estadual de futebol do Brasil. Quais são as ações realizadas no combate ao racismo ainda frequente no ambiente esportivo?
Acredito que acabar com a sensação de impunidade e adotar medidas punitivas exemplares são os caminhos. Temos as leis, é preciso executá-las com rigor, e isso vale não apenas para casos de racismo, mas também de fascismo, casos de violência entre torcedores, homofobia, xenofobia. O futebol não pode mais aceitar a intolerância e o ódio, não é um espaço onde vale tudo. Precisamos ir além das campanhas de conscientização, educar desde cedo as crianças, mostrar aos jovens jogadores das bases, de 11 anos, 13 anos, que o caminho não é o ódio nem a intolerância. E punir com rigor todo e qualquer caso que surgir, não apenas na esfera esportiva, mas também na esfera criminal.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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