Notas oficiais e realidades concretas

Oitenta tiros I:
Num domingo qualquer na cidade do Rio de Janeiro, uma família carioca, composta por 05 pessoas negras, um homem, sua esposa, seu filho de sete anos, seu sogro e uma amiga dirigem-se tranquilamente para um chá de bebê. E de repente são alvejados por mais de 80 tiros disparados por um grupo de soldados do Exército Brasileiro. Resultado: dois mortos, dois feridos e uma família destruída.

Oitenta tiros II:
Em Nota o Comando Militar do Leste afirma o seguinte: “Uma patrulha do Exército se deparou com um assalto nas imediações do Piscinão de Deodoro; Ao avistarem a patrulha, os dois criminosos, que estavam a bordo de um veículo, atiraram contra os militares; A equipe respondeu à injusta agressão; Como resultado, um dos assaltantes foi a óbito no local e o outro foi ferido, sendo socorrido e evacuado para o hospital; Um transeunte que passava pelas imediações foi ferido em decorrência da troca de tiros, tendo também sido socorrido e evacuado. Informações preliminares dão conta de que o cidadão inocente ferido está fora de perigo.”

Oitenta tiros III:
A esposa da vítima, ainda em estado de choque é ouvida pela imprensa e afirma o seguinte: “Por que o quartel fez isso, meu Deus?” “Os vizinhos começaram a socorrer (o meu marido), mas eles continuaram atirando. Eu botei a mão na cabeça, pedi socorro, disse pra eles que era meu marido, mas eles não fizeram nada, ficaram de deboche.” Contou que estava casada há 27 anos. “Eu perdi o meu marido, o meu melhor amigo”.

Escola Edem I.
Os pais de uma criança de sete anos de idade, estudante da Escola Edem considerada de excelência no Rio de Janeiro, retiram sua filha da referida Escola por conta da mesma, durante quase dois anos, estar sendo vítima de racismo cotidianamente por parte dos seus colegas, sem que a Escola tivesse adotado qualquer medida, apesar dos insistentes pedidos dos pais.

Escola Edem II
Em carta aberta os pais afirmam: “Por mais de um ano nos vimos falando praticamente sozinhos sobre a necessidade de diversidade racial nessa instituição. E não falamos sobre isso apenas por ideologia, falamos por necessidade, por apostamos nessa escola para colaborar no processo educacional das nossas três filhas.
Porém, essa carta é um atestado de desistência! Nós estamos desistindo de manter a nossa filha nessa instituição.”

Escola Edem III
A Escola responde: “Diante da repercussão que o recente caso da saída de uma aluna negra da escola alcançou, sendo divulgado pela imprensa e muito reverberado virtualmente, cabe esclarecer que a situação vinha sendo cuidadosamente encaminhada, primando pela devida proteção à integridade de todos os envolvidos.”

Lamentavelmente essas duas ocorrências são faces de uma mesma moeda de um país chamado Brasil, na qual as grandes vítimas tem sido, em primeiro lugar a verdade e em segundo lugar a população de origem negra, seja ela criança ou adulta. Notem, que tanto na esfera pública (versão do Exército) quanto na esfera
privada (versão da Edem) as notas se equivalem: os fatos relatados pelas vítimas, apesar da gravidade, não ocorreram, mesmo que tenhamos tido dois mortos, dois feridos, uma família destruída e uma criança traumatizada para o resto da vida. Enfim, é o Brasil sendo o Brasil.

Por isto a importância da denúncia e da solidariedade ativa de todos aqueles que acreditam num país civilizado onde a verdade e a igualdade sejam valores a serem cultivados e preservados. Por isto é fundamental que a luta contra a violência e o racismo continuem sendo o grande diferencial entre a civilização e a barbárie.

Toca a zabumba que a terra é nossa!
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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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