Os artistas negros João e Arthur Timótheo
Oswaldo Faustino conta a história dos pintores negros João e Arthur Timótheo
TEXTO: Oswaldo Faustino | FOTOS: Marcelo Camargo/ABr | Adaptação web: David Pereira
É obvio que tanto os “loucos” quanto a própria “loucura” tiveram seus conceitos transformados e revertidos, ao longo do tempo, desde 1852, quando foi criado no Rio de Janeiro o Hospício Dom Pedro II – o primeiro hospital psiquiátrico não só do Brasil, mas da América Latina.
Pautado a escrever sobre artistas plásticos negros brasileiros, me incomodou muito a história dos irmãos Timótheo – João (1879-1932) e Arthur (1882-1922) – que, depois de conhecerem a glória no elitista universo de pintores clássicos, com reconhecimento e premiações no País e na Europa, morreram ambos internados naquele hospital. O mais velho, dez anos depois do caçula. Desde aquele momento, comecei a refletir sobre as deformidades psíquicas provocadas pela escravidão, tanto nos escravizados quanto nos senhores e em seus descendentes.
João e Arthur nasceram livres, num Brasil escravocrata, beneficiados pela Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco”, assinada pela Princesa Isabel, em 28 de setembro de 1871. Vale lembrar que, antes dela, eram considerados escravos todos os filhos de escravas, mesmo que o pai fosse liberto (alforriado) ou fidalgo, não poucas vezes, o proprietário da mãe da criança. Com a nova lei, apesar de livres, os filhos de escravas ficavam até os 21 anos sob a tutela do senhor da mãe, que poderia usar gratuitamente sua mão de obra ou eram entregues ao governo. Daí a grande quantidade de negros nas forças armadas brasileiras, em especial na Marinha, em funções subalternas, que eram punidos a chibatadas, como os próprios escravos, o que culminou na revolta liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910.
Mas está provado que mentalidade não se muda com lei. Muitas gerações ainda serão necessárias, juntamente com políticas públicas do Estado, ações afirmativas e educativas e uma infinidade de iniciativas sociais para arrancar definitivamente da alma brasileira o racismo plantado pela escravidão. Se ainda hoje isso é uma realidade, imagina no final do século 19, quando o mecenas Enes de Souza, diretor da Casa da Moeda, percebeu o talento dos Timótheo, os admitiu como aprendizes, em 1894, e os estimulou a se matricularem na Escola de Belas Artes.
ENTRE A GLÓRIA E A LOUCURA
João e Arthur Timótheo foram alunos brilhantes de mestres como Rodolfo Amoedo, Zeferino da Costa, Daniel Bérard e Henrique Bernardelli. Produziram retratos tanto de personalidades, quanto históricos e de costumes, nus, paisagens e marinhas. Ambos foram também decoradores.
O caçula aprendeu com o italiano Oreste Coliva os segredos da cenografia e também se tornou um famoso entalhador. Premiado com uma viagem à Europa, em 1907, Arthur embarcou para Paris, onde fixou residência e, em 1910, se encontrou com o irmão e os demais artistas escolhidos para pintar o salão que representaria o Brasil no Pavilhão da Exposição de Turim, aberto no ano seguinte.
Não faltou reconhecimento em vida aos irmãos Timótheo. Nem dinheiro. Suas obras foram adquiridas por grandes colecionadores, aqui e no exterior, e pelo governo brasileiro. Há painéis de sua autoria no salão nobre da sede do Fluminense Futebol Clube, no Copacabana Palace, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. João deixou mais de 600 quadros. Arthur, criticado por deformações em desenho de pessoas, é considerado precursor do Movimento Modernista, que eclodiu em 1922, exatamente o ano de sua morte no hospício. Oito anos depois João também foi internado (por dois anos), e morreu ali, em 1932. O médico psiquiatra baiano Juliano Moreira (1873-1032), negro também nascido sob a Lei do Ventre Livre, mudou a história do Hospício Nacional dos Alienados – nome adotado por aquele hospital, após a proclamação da República. Isso foi constatado por outro mestiço nascido nas mesmas condições, o escritor Lima Barreto (1881-1922), que o conheceu durante sua primeira internação, em 1914, e declarou: “Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar.” Desde 1903, Moreira era o diretor daquele hospital psiquiátrico que, até a gestão anterior, era temido pelas péssimas condições, violência e maus-tratos a que se submetiam os internos.
E ainda tem muita gente que não admite o quanto o racismo se disseminou e até hoje danifica a alma e a mente do povo brasileiro. São essas as pessoas que se rebelam contra as pequenas doses medicamentosas que visam curar nossa sociedade.
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