Resistência marcou trajetórias de mulheres escravas do Recôncavo Baiano
Historiadora mostra como essas mulheres conseguiram sobreviver na fronteira entre escravidão e liberdade
As mulheres que viveram na região do Recôncavo Sul da Bahia, durante a segunda metade do século 19 ̶ entre 1850 e 1888 ̶ , mostraram-se fortes e determinadas. Aquelas africanas, crioulas, pardas ou cabras (um dos termos usados para designar pessoas que descendiam da mistura entre branco e negro; entre o crioulo e o africano) conseguiram sobreviver na fronteira entre a escravidão e a liberdade. “Muitas delas conseguiram, com trabalho e astúcia, sair do cativeiro e construir um patrimônio significativo. Outras, porém, penaram até a morte tentando angariar meios de sobrevivência”, conta a historiadora Virgínia Queiroz Barreto.
A partir da análise de documentos, manuscritos e impressos de arquivos públicos das cidades de Nazaré, Santo Antonio de Jesus, Aratuípe e Jaguaripe, no Estado da Bahia, Virgínia traz à tona a trajetória dessas mulheres que viveram naquela parte da província da Bahia, também conhecida como o “recôncavo mandioqueiro”. Essa expressão surgiu por aquela região ser um polo produtor de gêneros de primeira necessidade, sobretudo a farinha de mandioca, que abastecia os mercados da capital. O polo, segundo a pesquisadora, atraiu diversas pessoas que buscavam sobreviver, incluindo aquelas mulheres recém-saídas do cativeiro. A tese Fronteiras entre a escravidão e a liberdade: histórias de mulheres pobres livres, escravas e forras no Recôncavo Sul da Bahia (1850-1888) foi defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e teve orientação da professora Maria Odila Leite da Silva.
Virgínia conta que seu interesse pela pesquisa se deu quando ela participou do projeto Guia de Fontes do Recôncavo. Ela desenvolveu a atividade como docente da Universidade do Estado da Bahia, com monitores da graduação. “Foi aí que pude ter contato com uma rica documentação, como documentos manuscritos e fontes impressas”, lembra. Os documentos estavam armazenados em caixas e esquecidos em prédios públicos. “Hoje estão sob a guarda das cidades de Nazaré, Santo Antonio de Jesus, Aratuípe e Jaguaripe”, ressalta a historiadora, lembrando que “os papéis, que estavam armazenados em caixas pelos cantos de repartições públicas, foram lidos atentamente e com bastante cautela para que não fossemos induzidos ao discurso ‘homogeneizador’ das autoridades da época”.
Maria da Conceição
Em meio a personagens que surgiam durante suas pesquisas, uma delas chamou a atenção de Virgínia: Maria da Conceição. A pesquisadora deparou-se com um processo de ação de liberdade daquela mulher negra. Segundo a historiadora, os fragmentos deixados naquele documento foram o fio condutor que levou a muitas outras histórias que “guardavam informações que mereciam ser contadas”.
Africanas, crioulas, pardas ou cabras na condição de escravas, libertas e pobres livres foram as personagens que iam aparecendo naquela garimpagem; nas leituras das entrelinhas e fragmentos daqueles papeis. Virgínia também acessou documentos localizados no Arquivo Público do Estado da Bahia. Formou-se então um “corpo documental” composto de processos judiciais (crime e civil), registros eclesiásticos (batismos, óbitos e casamentos), registros notariais (testamentos, inventários, livros de notas do tabelião), além de jornais da época. “Os caminhos trilhados por essas pessoas, no pós-abolição, foram muitas vezes externados nas mensagens por elas deixadas em seus testamentos de últimas vontades, nos processos criminais e em apontamentos produzidos pelas autoridades da época.” Nos testamentos, constavam as lembranças de raras passagens daquelas vidas, diferente dos apontamentos produzidos pelas autoridades. “Encontramos uma visão mais aproximada sobre a vida que levaram e a determinação com que lutaram para alcançar a liberdade, a audácia e a astúcia em rearticular seus meios de sobrevivência, contatos sociais adquiridos no tempo da escravidão e outros que foram firmados já nos tempos de liberdade”, destaca Virgínia.
“Apesar de a vivência na escravidão ter sido um elemento que aglutinou homens e mulheres em uma luta cotidiana pela liberdade, naquele momento a sobrevivência daquelas mulheres era mais complicada do que para os homens.”
Espaços de moradia
As cidades de Nazaré e Jaguaripe tornaram-se espaços de moradia, lazer e trabalho para aquela população. “Na condição de escravas ou recém-saídas do cativeiro, perambulavam em busca de meios de sobrevivência. E era nesses espaços [ruas, praças e bairros] que fixaram moradias, encontravam companheiras e juntas fortaleciam e amenizavam as dificuldades”, descreve Virgínia.
A historiadora também estudou detalhadamente a posse escrava e observou a existência de pequenos plantéis que se ocupavam de uma lavoura voltada para a produção, quase sempre em pequena escala, de café, açúcar e mandioca. Saídas diretamente da África ou nascidas e criadas nas freguesias das duas cidades e nos seus arredores, essas mulheres deixaram suas marcas. “Elas formaram famílias, construíram laços de solidariedade e redes de proteção que lhes garantiram a sobrevivência”, ressalta.
Mesmo nessas condições, aquelas mulheres justificaram, questionaram, peticionaram e anexaram documentos capazes de provar sua condição de mulheres honradas, que viviam do seu próprio trabalho e não “do que se lhe dão”. “Foi o caso de Fausta Maria de Jesus, que anexou ao processo que a envolveu em um caso de mancebia [por manter local de prostituição], um abaixo-assinado atestando sua idoneidade de mulher honesta e trabalhadeira”, destaca Virgínia. “Fausta conseguiu comprovar que era proprietária de uma pequena quitanda em sua própria casa.”
Assim, usando caminhos diferentes, africanas como Maria do Rosário, Angélica Rita de Santa Anna, Maria Joaquina de São José, Joanna Maria da Luz, Josefina e Luisa redefiniram sua condição social e conquistaram novos espaços naquela sociedade que as escravizou.
Fonte: Jornal da Usp